quarta-feira, 1 de julho de 2009

Algo se muere en el alma



Recordo continuamente uma sms que recebi por volta do fim de ano, não sei ao certo qual ano, que de forma peculiar resumia amizade. A quadra natalícia é propensa ao consumo em massa e, nos últimos anos, à troca desmesurada de mensagens. Os minutos que antecedem a efeméride são marcados tipo sinal horário pelo meu telemóvel que apita sms como se não houvesse amanhã. Nunca respondo. Essa mensagem dizia: Os amigos são como as nádegas, merda nenhuma os consegue separar.
Essa pitoresca clareza sobre amizade e estima, recebida mais de uma dezena de vezes nessa mesma noite, ficou cravada na minha memória como se fosse uma daquelas músicas que ouvimos apenas uma vez e passamos dias a trautear contra a própria vontade. Não obstante, inseparáveis só mesmo as nádegas. Os amigos separam-se sempre, inevitavelmente, até mesmo em pensamento.



Há três anos que estou fora de Portugal.
Tenho conhecido muitas pessoas interessantes. E são essas coexistências que dão significado à vida errante que decidi para mim. Experiências que moldam a minha personalidade e desviam o meu caminho daquilo que, imediatamente antes do convívio, julgava certo. Recordações que ficam inscritas no pensamento e que revejo a meu bel-prazer, bastando um aroma, música, silêncio, objecto, paisagem, palavra, frase, gesto, sorriso, fotografia, filme, etc., em jeito de catalisador para me despertar a memória.
Nada é eterno, só o tempo. Servem-me de consolo as reminiscentes vivências que vou coleccionando na minha vida, estupidamente minúscula.
Apenas me revolta a dificuldade que tenho em lidar com a separação, com o inadiável e impiedoso adeus. Em aceitar a passagem, a fase. Em reconhecer a solidão inalienável da condição humana. Em voltar a mim. Em não saber usar instantaneamente as boas recordações.
E revolto-me!
Onde está o Yan Tsen Yuh (Mario), pequeno agitador do universo, esse meu querido amigo chinês que me proporcionou deliciosos manjares e risotas do mesmo calibre? Onde está o Nicola Monaco, siciliano que me apresentou os prazeres do Nero D’avola e me ensinou a degustar parmigiano com mel, numa tarde que nevava em Parma ao som de Diego el Cigala e Bebo Valdés – En la vida hay amores que nunca pueden olvidarse? Onde está o Gustavinho, exímio narrador do “show dji bola” e companhia inigualável de roadtrip – é o tic-tac do tempo, o toc-toc da bola, é fogo no aventáu do pasteleiro? Onde está a Maylo? E as Marias, Mancha, Rodriguez, e Europa? E a Mercedes? Onde está a Berta, vicina del mio cuore? E o Carlitos Ribes? Ou o Eloy?

A todos eles afiancei amizade eterna, repetidos reencontros, troca de correspondência assídua, e um sem fim de promessas que, à partida, nunca seriam cumpridas – e não foram. Só naquele momento de despedida, perdidos na envolvente narcótica de “Cuando un amigo se va, algo se muere en el alma”, é que nos recusámos a perceber essa evidente conclusão de mais uma etapa da vida - é tão difícil interiorizar o fim!
E esperamos. Em anseio esperamos que o tempo cure essa necessidade imediata de reviver esses bons momentos - e ele cura, lentamente. E àqueles que temos a sorte de rever, um dia mais tarde, reservamos a explosão de emoção e alegria. As memórias. As cumplicidades que se decifram apenas com dialecto ocular. Que perguntam “lembras-te?”. E alargados e coniventes sorrisos acompanham, em câmara lenta, um bom convívio de reencontro. E chega a maturidade da relação.


Até já Pião!

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Alfa Dominante


Lembro-me assiduamente de alguns documentários da BBC em que o Sir David Attenborough, inigualavelmente douto e de graça singular, explicava a interacção e organização das comunidades de animais. Sobre esse tema lembro-me de dezenas de programas. Desde espécies mais solitárias às mais sociáveis e hierarquicamente organizadas. Lembro-me dos macacos que vivem em comunidades grandes e de acordo com a idade, experiência e sobretudo força e pujança sexual, ocupam lugares de destaque e gozam de privilégios em relação aos elementos mais fracos. Lembro-me do Macho Alfa Dominante, termo utilizado pelos estudiosos destas matérias para designar aquele que tem mais poder sobre a comunidade, que ocupa o topo da cadeia comunitária, desenhada e aceite pela colectividade de forma hierárquica. Simplificando, aquele que pode cobrir a fêmea que lhe der na real telha. Aqui em Moçambique lembro-me muito do Macho Alfa Dominante. Também se falava da Fêmea Alfa Dominante, mas essa não me lembro – aqui não.
Enganem-se aqueles que pensam que a proximidade com a selva me aviva esse tipo de memórias videográficas. Não. Talvez isso tenha acontecido nas minhas poucas incursões pela savana. Mas aqui em Maputo a selva é outra e está repleta de machos Alfa Dominante.




O Macho Alfa Dominante em Maputo (MAD), é um hominídeo endémico de Portugal (pontualmente de África do Sul), caucasiano, porte médio, cavidade abdominal proeminente, dono e senhor de uma taxa de bazófia cobiçável, que padece (ou faz questão de) de um apetite sexual descontrolado, e facilmente identificável quando portador de apêndice peludo entre nariz e boca (também os há sem bigode). As vestes são de uma forma geral modestas e invariavelmente atentam às tendências do mundo da moda. Na maior parte dos casos usa calças de ganga e calça chinelinho de couro bem ao jeito do filho do criador – só no que toca ao calçado, claro. Cobre normalmente o tronco com camisa de tons claros e desabotoa os botões superiores dependendo da penugem no peito e do tamanho do ornato que traz ao pescoço – quanto maior menos botões apertados.
O MAD, julga de forma inocente ser o único em seu redor com característica Dominante. Mas MADs há muitos – é como os chapéus! Trata-se portanto de uma casta egocêntrica.
O MAD pode ser encontrado em diversos ambientes. Depende muito do à-vontade de cada um, do tempo de permanência na selva Maputense, da idade, do estado civil (em Portugal), e da responsabilidade profissional. No entanto, é de noite que se regista mais actividade do MAD e junto de locais onde a população feminina seja francamente entusiasmante (vulgo, fácil) para o sucesso da investida. O MAD genuíno não tem hora para caçar nem para aparecer – qualquer local e hora é ideal para apanhar uma fêmea mais distraída (entenda-se faminta, sem dinheiro ou um pouco mais ambiciosa).
O MAD nunca se mistura com os da sua própria raça - apenas para procriar. Pauta-se pela filosofia do “tudo que vier à rede é peixe” e não conhece (ou convence-se que não conhece) o fracasso. À semelhança dos seus primos símios vai saltando de galho em galho, cortejando o seu harém, fazendo-se sempre acompanhar da sua melhor e única arma – o metical, ou dólar para as moçoilas mais exigentes.
O ritual de corte não varia muito de MAD para MAD. Cada um com o seu estilo, caracteriza-se pela frontalidade da abordagem, superioridade, e taxa de sucesso absoluta. As relações nunca são em regime de exclusividade – o MAD preza-se polígamo – ainda que num primeiro contacto possa ser forçado a mentir sobre as suas intenções.
Após a conquista, o MAD passeia-se orgulhosamente, por toda a parte, de mão dada ao troféu. Para que todos vejam, vai distribuindo sorrisos, fitando com regozijo os transeuntes que ele julga invejosos e portanto concorrentes. Ao mesmo tempo, sem ter mãos a medir, reparte ameaças e propostas oculares às potenciais substitutas do troféu que ostenta naquele momento.


O MAD, apesar do seu comportamento olimpicamente ridículo e abominável, é uma classe respeitada e bem conservada, e por isso fora de perigo de extinção. Não é de admirar que os Portugueses não sejam vistos com bons olhos, seja pela comunidade estrangeira, seja sobretudo pela comunidade local.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Road to nowhere

É por vezes desconfortante a vulnerabilidade que a solidão me sujeita. Despersonaliza as minhas acções e ofusca os meus objectivos. O carácter, outrora bem definido, dilui-se na desconfiança que o meu ego gradualmente reconhece.
A ausência de estabilidade emocional proporciona-me profundos exercícios de valor e com eles largas horas de dúvida e desconsolo – nada corre como deveria correr.
E o tempo passa…
Não sei. Não faço a mínima ideia do que quero...
Este vácuo de sustento emocional faz-me perseguir e inventar cumplicidades em personagens que nada se assemelham à original. E insisto. E chego a acreditar! E logo caio. Tirem-me daqui! – Suplico às vezes, não sei bem a quem, na expectativa de encontrar uma solução geográfica para um problema de carácter intangível.
Esta concepção labiríntica da paixão desnorteia o caminho que, em longínquos momentos de lucidez, escolheria para mim. E para ti.
Não sei para onde vou… Ninguém sabe…
Troquei-te, justamente, por outra dimensão, por outra inspiração, égide de investidas mais ousadas. Por um colosso imaginário, esculpido apenas com as tuas virtudes, que me serve de orientação, por vezes falsa, no meu calvário emocional.
Doce… Amargo… Doce… Amargo… Eterna dicotomia que me obriga a degustar todos os paladares da vida. Sorrir, chorar, aprender, avançar, retroceder, evoluir. Viver!
É este barómetro emocional, quando em valores altamente acrimoniosos, que regista níveis de criatividade estonteantes e precipita-me em textos desconexos que só para mim constituem coerência.
Estou bem. Vivo bem. Não obstante, fazes-me falta.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Alunagem

Versão audio, narrada por Miguel Guilherme para o programa da Antena 1 - Histórias Devidas.

Autor: António Ferreira Lobo

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Alunagem - The Jorge's Code

Fazia propósito de me explicar há mais tempo, aliás, pensei fazê-lo como texto introdutório deste memento electrónico. No entanto, à sombra do “faz para amanhã o que podes fazer hoje” que desde há muito é meu apanágio, fui protelando a inevitável explicação do título do meu blog.
Aproveito oportunamente o momento, seja pelas saudades que tenho da minha família, seja pelo confronto obrigatório com malogradas condutas de muitos que me rodeiam, para fazer chegar ao leitor o significado, para mim, de Alunagem.

Era primavera e corria o ano da graça de 1970 – assim introduz, propriamente, o texto que dá vida a mais uma, das muitas, pitorescas histórias que o meu Pai foi coleccionando ao longo da vida e felizmente vai partilhando com os mais próximos – precioso legado que orgulhosamente também vou compartindo com aqueles que julgo serem merecedores e que pauta as minhas deliberadas e inocentes asneiras na esperança de uma dia, acrescentar, com mestria semelhante, outros episódios no portfolio do meu progenitor. É portanto, este título, mais do que uma filosofia de vida um tributo ao meu Pai.
O assunto da ordem do dia, podia ser outro – o fim dos Beatles, a reorganização do partido do proletariado, especular sobre a saúde do ditador, a guerra fria, versar em jeito de homenagem póstuma a Almada negreiros, o “FêCêPiê”, enfim, àquela adiantada hora em que se tertuliava, ao sabor de outros sabores, naquele restaurante da urbe tripeira, havia pano para mangas. E o debate era autoritariamente moderado pelo Dr. Jorge que divagava displicentemente sobre a recente questão da alunagem.
Cada um aluna como gosta e como pode, sempre que pode – antecipava assim, o advogado da invicta, a conclusão do debate/monólogo. Frase de génio (dependendo da interpretação, claro)!

Eu pessoalmente associo a palavra a uma viagem planeada mas cheia de incertezas. Todos nós vamos alunando como gostamos e como podemos, sempre que podemos. E essa viagem não tem necessariamente que ser física – pode ser virtual, emocional, sensorial, etc. - sempre e quando nos aventuramos por caminhos que não dominamos totalmente. Eu por exemplo alunei aqui em Maputo. Já alunei noutras luas e cenários. Como pude! E há que saber lidar com as adversidades que surgem e sobretudo saber respeitar o espaço do próximo – só dessa forma a minha consciência me permite alunar como gosto, sempre que posso.
Maputo empresta solo a muitos astronautas que não sabem, ou não querem, alunar como manda o código – the Jorge’s code. Recusam-se a cumprir as regras mas condenam outros por semelhante incumprimento. Saltam valores e princípios básicos de co-habitação nesta lua que é Maputo. Doutos em hipocrisia são olimpicamente incoerentes nas suas acções e justificam-se com execranda verborreia que me entra por um ouvido a cem e apetece sair pela mão, certeira, a duzentos, mesmo na focinheira dessas pobres ratazanas. Não sabem alunar, saberão talvez aterrar, e mesmo assim muito mal.
Faço votos para que este pequeno parágrafo sirva de carapuça a esses eternos aspirantes a Neil Amstrong, e quem sabe, dependendo dos respectivos coeficientes de inteligência e bom senso, arrepiar caminho - Esse não é o caminho, e esses reles passos não farão de modo algum fazer saltar a humanidade (apenas o revés).

Posteriormente publicarei o podcast onde o notável e divertido Miguel Guilherme narra na íntegra o episódio que deu origem a este artigo, mais tarde publicado por Edições ASA em Histórias Devidas.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Sinabonani




As viagens ao fim-de-semana sucedem-se naturalmente, cada vez mais. A proximidade e multiplicidade de destinos raramente deixam espaço e tempo para o descanso (ou não) na capital. A surpresa e espanto, seja numa paisagem, num animal, numa praia, num novo amigo, num gesto, num repasto, ou num cheiro, começa a ser um hábito. E é essa agradável conotação banal das minhas últimas experiências que desculpa o descuido no registo electrónico.

Maputo é uma cidade relativamente grande. No entanto, a diferença de “castas” reduz a massa de habitantes a um círculo reduzido e restrito de pessoas, maioritariamente estrangeiros e Portugueses. E apesar de constituir uma ferramenta essencial de trabalho (bons contactos, fácil acesso a informação privilegiada, entreajuda profissional, vantagens comerciais, etc.) pesa no mesmo valor (inverso) pela falta de privacidade social. Maputo não é própria para incautos crónicos da flatulência – por outras palavras, não se pode dar um peido sem que o resto da comunidade saiba, comente e opine.
Na sua grande maioria, estes atentos repórteres da vida alheia, com promitente carreira num “24horas”, “o crime” ou pasquim de calibre semelhante, respiram a vida dos outros e fazem questão de a partilhar a quem estiver à mão de semear. De fazer inveja a muitos talk shows pós-prandiais “del corazón”, que eu tanto critico e abomino, a rapaziada do “diz que diz” vai aproveitando para se auto-promover através das fraquezas, na maior parte das vezes especuladas, dos seus amigos e conhecidos. É um exercício comum, odioso e perverso, com repercussões muitas vezes irreversíveis na promessa “life quality” que a capital indicia à chegada – talvez o maior defeito de Maputo (não dos Maputenses).

Enfim, será um bom objecto de reflexão para um próximo artigo. Servem apenas os últimos parágrafos para excluir alguns dos meus amigos, nomeadamente e sobretudo a companhia deste último fim-de-semana, da frívola classe que referi anteriormente.
O primeiro de Maio serviu de pretexto para um festival de reggae na Suazilândia. Não tanto pelo festival, mais libertino que liberal, e por isso um pouco fora do enquadramento da ordem do dia (1º de Maio), aproveitei a dica para viajar novamente até ao diminuto país vizinho, em boa companhia.
Chegamos com tempo suficiente para encontrar um alojamento para o fim-de-semana e fazer algumas compras de supermercado antes de entrar no recinto do espectáculo. De sublinhar a qualidade e variedade de produtos, por comparação a Moçambique, que encontramos naquele supermercado – senti-me como um miúdo africano no “toys r us” ou de regresso, por momentos, ao meu insubstituível pingo doce. As meninas aproveitaram para comprar adereços para entrar em apoteose no recinto festivo – um espécie de bandolete/coroa com luz intermitente, bem ao estilo de miss universo (versão pimba).
Ficamos alojados no Legends, um backpackers de baixo orçamento (vulgo, pardieiro) onde iríamos partilhar camarata e ressonâncias com mais sete pessoas (isto é, dez pessoas em cinco beliches). Enchemos a blusa com duas ou três sandochas cada um e seguimos para o “One Love Festival”.
As minhas expectativas não eram muito altas quanto à qualidade das bandas e talvez por isso tenha voltado a casa com surpresa positiva. Apesar de ter um grande apreço pelo seu impulsionador (ou talvez fundador) Bob Marley e alguns dos seus mais recentes seguidores (Patrice, Jason Mraz, Julian Marley, Manu Chao, etc.), o reggae não faz parte das minhas escolhas favoritas. Serviu por isso, também, para aprender alguns pormenores sobre o estilo musical e religião adjacente – Stolen from Africa, brought to America.
A casa (Old Greyhound Stadium, em pleno vale de Elzwini) estava a um terço da sua capacidade máxima. O ambiente era descontraído, por vezes demasiado, fruto do ritmo da música e dos estupefacientes consumidos compulsivamente pela grande maioria - indissociáveis da religião rastafari.
Depois de jantar e da retirada do casalinho paulista voltei a aproximar-me do palco. Recebi com surpresa a deliciosa actuação duma intérprete local, com quem mais tarde tive a oportunidade de privar e trocar algumas impressões. Depois disso ainda insistimos ficar mais mas o cansaço forçou-nos a recolher aos nossos precários aposentos (que naquela noite tiveram sabor de figo).
No dia seguinte acordámos quando acordámos. Sem hora marcada e sem plano bem definido.
Na Swazi existe um leque de actividades para preencher as horas vagas dos turistas. Nesse aspecto, e noutros também, está muito melhor preparada que Moçambique. Dos variadíssimos programas (rafting, caving, quad, game view, horse riding, etc.) optamos pelo Bike Safari – e foi tiro certeiro para animar a tarde de sábado. Infelizmente não tivemos a companhia do quinto elemento que, à luz da famigerada filosofia “amigo não empata amigo”, comungada pela totalidade do grupo, nos preteriu por um programa alternativo (we missed you, dulcinea del toboso).



Começamos a nossa tour, atrás do simpático guia “Sito” (em inglês gift, frisou) sem saber muito bem o que nos esperava. Partimos com a ajuda de todos os santos até chegar à primeira subida que anunciava a chegada da primeira aldeia. Assobiei por momentos o tema do “Verano Azul” mas ninguém acompanhou, talvez por desconhecimento, fruto da idade ou proveniência, ou simplesmente pela falta de fôlego. Lado a lado com o guia fui aprendendo e pondo em prática algumas palavras no dialecto local. Os nativos respondiam com orgulho e espanto aos meus cumprimentos recém-assimilados – fui despachando “Sinabonani” (how are you, segundo Sito) a todas as pessoas com que me cruzava. Depois de várias pedaladas demos entrada na reserva natural do vale de Elzwini onde o Sito nos fez uma pequena introdução ao nosso passeio. Soubemos alguns pormenores sobre a família real Swazi (costumes e rituais) e sobre o que poderíamos encontrar na reserva. De registar o adereço que cobre as vergonhas masculinas dos nativos – uma bola oca, com orifício à medida para o dito cujo – que deixou alguns dos presentes de boca bem aberta. O guia, ante a surpresa da Filipa pela dimensão do ornamento (muito semelhante a uma bola de golf e orifício de diâmetro impróprio para africano – não cabia o dedo mínimo) acrescentou que havia outros tamanhos com sorriso viril e orgulhoso.
O safari propriamente dito foi uma experiência excepcional. Para além de ser o meu primeiro, a proximidade que a bicicleta proporciona (ou obriga) com os habitantes do parque (veados, gnus, zebras, hipopótamos, crocodilos, javalis, etc.) deu um toque especial ao meu baptismo. Com o ameaçar do crepúsculo, regressámos em marcha “presto” sob pena de não enxergar o caminho de volta.
O jantar foi no Malandela’s. Tiramos a barriga de miséria com um bom naco de vitela, amparado por um shiraz sul-africano, enquanto recordávamos a fresca experiência da tarde. Aproveitei para verter águas, pela segunda vez, onde outrora o Jimmy Carter deu o ar da sua graça (ver artigo “nós passamos, mais ninguém passou). A soirée seguiu-se no hostel no mesmo registo do jantar. Tivemos ainda a companhia de um norueguês que passou e ficou. Acabou por ser o centro das atenções, quer pelo figurão, quer pelos temas absurdos e surreais, quer pela pelo jeitinho propositadamente “maricôncio” (presumo que, na expectativa de encontrar afinidade com algum dos presentes).
No domingo partimos, sem pressa, para Maputo. A meio da viagem fizemos um desvio, ainda na Suazilândia, que daria lugar ao meu segundo safari. Entramos noutra reserva natural, desta feita na expectativa de encontrar o rei da selva. Apesar de não descortinarmos nenhum felino valeu pelo encontro com alguns portentosos rinocerontes.
Continuamos para Maputo, com pausa obrigatória e prolongada na fronteira, bem ao estilo Moçambicano. Cheguei à capital com mais uma excelente experiência no palmarés e somei algumas cumplicidades que vão cimentando a amizade que tenho por aqueles que me acompanharam (tks).

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Perder a honra e alguns vinténs

A vida corre e o tempo não se fica atrás. Os que olham a morte como inevitável derrota, vêem no tempo o maior inimigo, respeitosamente odiado. Eu, comum mortal, não fujo à regra e dou por mim, no tempo, a divagar sobre esse fiel e imortal companheiro. O exercício, pode ser curto como este parágrafo mas grande como a vontade de o fazer travar e termina invariavelmente sem conclusão mas com certezas quase absolutas. No entretanto (ou entretempo) vou lembrando canções que servem de banda sonora e ao mesmo tempo ajudam meu raciocínio: ouço alguns que imploram que volte atrás; outros que nele se escondem porque dizem que tem asas; alguém que suplica ao relógio para se deter receando que vida se apague; outros tantos que se questionam e queixam da mesma forma e acabo por concluir, de forma simples, imaginando o Pablo Milanés – El tiempo pasa, nos vamos poniendo viejos.. (na versão da Mercedes Soza). A cadência do Chronos nem sempre é a mesma, umas vezes mais insensível porque não nos deixa saborear o momento como pretendíamos, outras vezes arrasta-se, faz dos minutos horas e das horas faz dias. Mas apenas ele, o tempo, caminha para a eternidade, nós não.
Tenho a sensação de estar em Moçambique há bastante tempo, muito embora me faltem alguns dias para completar apenas três meses. Vão dizendo que a distância é o olvido e eu tão-pouco concebo essa razão. E lá vem à baila, inevitavelmente, a saudade. Essa impiedosa vulnerabilidade que a condição humana e distância nos sujeita. Sinto falta da minha família, muito. Dos meus amigos também. É com essa consciência nostálgica e imbuído no espírito fraterno que recordo uma tertúlia passada.
Passeávamos pela cidade num dos mata-sogras dele - nome pelo qual, o Vico, designa os bólides de baixo orçamento da família - a falar de tudo um pouco. Corria o tempo em que a experiência sexual de cada um podia fazer uma diferença quase de pai para filho, ainda que a desigualdade de idades fosse mínima. Talvez por esses dois motivos batíamos vagarosamente a urbe flaviense de “cu tremido” a falar de gajas. Onde o Vico, mais velho, tomava as rédeas do assunto e aconselhava-me até onde a experiência lhe permitia (Bons tempos).
À passagem pelo municipal de Chaves (glorioso estádio do desportivo) o tema girou cento e oitenta graus e passou a dissertar-se sobre o conceito de amizade. Nem todos os amigos se consideram da mesma maneira, aliás a maior parte desse pessoal não passam de conhecidos para mim – dizia o meu amigo, explicando por outras palavras a hierarquia da amizade. A escala começa no pior inimigo, passa pela “persona non grata”, o indiferente, o conhecido, o amigo e culmina nos verdadeiros amigos - no máximo um punhado de compinchas avaliados em jeito de top five.
Sem dar mão da palavra passou a explicar a diferença entre o amigo e o verdadeiro amigo. Utilizou-me como exemplo e eu retribuí com agrado e com sensação de “special one”. Eu gosto muito dos meus amigos – dizia - mas por ti, por ti perdia a honra*.
Precisamente por não ter aplicado na íntegra a referida expressão (perder a honra), eu assustei-me por breves segundos, pondo em causa a sexualidade do meu amigo e a minha integridade física dentro daquele mata-sogras. Rapidamente, e tendo em conta os relatos da conversa anterior, percebi que aquilo era um verdadeiro elogio. Aliás, perder a honra, era como que a prova máxima na escala da benquerença. Neste sistema de medida, perder a honra é mais bravio que dar a própria vida.
Até hoje utilizo esse sistema “métrico” e não imagino outro mais perfeito.
Finda a história deixo um grande abraço de saudades. Sinto a vossa falta e sentirei até que a vida (ou a honra) nos separe.
___________________
*Algum tempo depois deste episódio ouvi um dos amigos do meu pai a utilizar a mesma expressão, um pouco mais elaborada e catastrófica obrigando o protagonista a perder a honra e grande parte do seu património. E usada em situações mais banais e de forma um pouco leviana fruto da idade, experiência e falta de amor ao corpo. Era fim de uma tarde de sábado e o protagonista rematava com a seguinte frase – isto agora para acabar em beleza, eram umas sardinhas com pimentos assados! Dava o cú e três tostões!

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Abram alas!!!

No dia-a-dia Maputense sucedem-se situações que, a nós estrangeiros contrariamente aos impávidos locais, não param de nos surpreender. Muitas vezes são pormenores que, quando escritos, não gozam do mesmo impacto que a privilegiada assistência “in loco” proporciona. Tanto quanto posso vou assentando neste memento alguns acontecimentos engraçados que se me atravessam sem pedir licença e que na maior parte das vezes me alegram o dia.


As sirenes de carros patrulha, em Maputo, são uma constante. A autoridade gosta de se fazer sentir. Normalmente em carros todo-o-terreno comandados por piloto e co-piloto (provavelmente os mais graduados da equipa) que juntamente com os restantes colegas, sentados costas com costas no banco corrido (pregado no centro da zona de carga do carro), batem as ruas da capital em busca do crime. Para além destes, e pelo menos duas vezes ao dia (no inicio e no fim), ouvem-se um pouco mais alto as sirenes dos escoltas do Senhor Presidente Guebuza, que, ainda que distando de pouco mais de um quilómetro entre aposentos e local de trabalho, faz questão em cortar a avenida sempre que vai trabalhar e quando lhe dá na real veneta - devidamente protegido por vários carros e motos, à frente e atrás, em aparato de fazer inveja aos sobrinhos do Tio Sam.
Normalmente, assisto a estes acontecimentos no final da jornada laboral, que invariavelmente passo na esplanada do café piripiri. Entre rissol, Coca-Cola, amendoim e Laurentina, juntamente com colegas e amigos, ali se fecha a tarde a falar sobre tudo e sobre nada.
Nesse dia, como nos outros tantos, o trânsito estava condicionado pelo recolher a casa em massa e pelo semáforo, então vermelho, que fica mesmo ali a dez metros da esplanada – tudo normal. Começámos a ouvir uma sirene e, já habituados à ronca do costume, continuamos o nosso lanche como se nada passasse. Com o aproximar do ruído irritante e da luz azul intermitente apercebo-me que se tratava de um camião dos soldados da paz. Jamais havia visto um carro de bombeiros por estas bandas, pelo que a aparição do bólide vermelho já constituía uma novidade para mim. Vinha desenfreado e como se não bastasse a estridente cantiga da sirene também buzinava como se não houvesse amanhã. Ao aproximar-se dos automóveis, inevitavelmente imobilizados, que aguardavam pelo sinal verde do semáforo lançava ainda sinal de luzes como que pedindo uma milagrosa passagem – era impossível algum carro naquela dupla fila dar mais do que dois palmos de passagem. Ainda assim, talvez em desespero, e praticamente esgotadas hipóteses para o milagre de Moisés, o comandante do camião tirou da manga mais uma tentativa para afastar a barreira. Pegou no megafone e mesmo ali à nossa frente ecoou o seguinte aviso – Senhor Veículo, deixe passar Os Bombeiro! (leia-se com a devida pronuncia Moçambicana).
Toda a esplanada sorriu e riu. E eu fui para casa, contente e com mais uma história no bolso.

Inhaca


Depois de várias promessas à minha amiga Maggy e também por insistência e conselhos de vários amigos e familiares, reservei o fim-de-semana para conhecer um pouco da ilha de Inhaca, mesmo aqui em frente a Maputo.


O voo estava marcado para as oito da manhã. Chegámos com uma hora de antecedência para o check-in. Tive ainda a oportunidade, antes de embarcar, de cumprimentar Mia Couto (que estava de partida para Lisboa) e agradecer as deliciosas leituras que me tem proporcionado. À passagem pelo detector de metais fomos avisados que seria a última vez que nos deixariam voar com garrafas nas mochilas – agradeci com o respectivo refresco (entenda-se gratificação). Às oito, como previsto, entrámos no “chapa voador” e rumámos ao fim-de-semana propriamente dito.
A viagem, de quinze minutos, foi bastante interessante. As vistas, sobretudo para a ilha dos Portugueses, são magníficas – lembram fotos de revistas, que muitas vezes desconfiamos existirem de verdade. O comandante fez-se à ilha com distinta classe e arte, e teve direito a aplauso colectivo.
À nossa espera, entre um sorriso que esconde embaraço e contentamento, estava a nossa querida amiga Maggy Horiuchi. Pegámos nas nossas malas e lancheiras e fomos saber de alojamento para os restantes membros do grupo. Em poucos minutos chegámos ao “Manico Camp”, um complexo low-cost para backpakers composto por várias cabanas, e cozinha e lavabos de uso comum. Eu e o Hugo, porque fomos os primeiros e inicialmente os únicos a confirmar a nossa ida, fomos prendados (pela Maggy) com aposentos de luxo, a preço mais do que low-cost (vulgo, de borla), no prestigiado hotel lodge Pestana.
Provavelmente graças à simpatia contagiante da anfitriã, um dos seus colegas de trabalho sugeriu e ofereceu a viagem à ilha dos Portugueses e mais tarde à ponta de Santa Maria. Poucos minutos depois aí estávamos nós no barco do hotel rumo à ilha que, de nome, nos toca por direito. Com direito a escolta de golfinhos, encalhámos na ilha aparentemente deserta, com entusiasmo e estilo conquistador bem ao jeito “verano azul” – vários quilómetros de praia circular só para nós e para dois casais que nos acompanhavam no barco.
Alguns mergulhos e recolhi ao guarda-sol para recompor o sono que a noite anterior em Maputo me havia roubado – a capital não pára, sobretudo ao fim-de-semana e no que toca a ócio e espectáculos a agenda está sempre bem recheada de eventos irrecusáveis (esta sexta-feira foi a vez de Adriana Calcanhoto e outros músicos locais tão bons ou melhores). Regressámos à Inhaca para almoçar e integrar a Maggy (que acabava de trabalhar) na comitiva.
Subimos para a parte de trás do Defender de caixa aberta e acomodámo-nos nos bancos corridos. A viagem até à ponta de Santa Maria não terá mais de cinco quilómetros de distância, mas desde logo fomos avisados pelo simpático motorista “Carlitos” que demoraríamos cerca de vinte minutos a chegar. A não ser a Maggy, ninguém estava à espera de uma viagem tão alucinante. O piloto, com o pé direito descalibrado, fez-se ao mato a todo o vapor. Nalgumas partes do caminho a vegetação era tão densa que formava um túnel natural, onde o carro cabia à justa, que se estendia por várias centenas de metros. Carregados de adrenalina, atentos às investidas dos galhos que muitas vezes sobravam para nós, fomos curtindo o giro de olhos bem abertos para não perder pitada. De quando em vez, à passagem pelas pequenas povoações (aldeias familiares com quatro ou cinco palhotas), éramos brindados com saudações (ou impropérios!) em shangana. E os mais novos, que às vezes eram às dezenas, corriam atrás do bólide, mais do que as pernas lhes permitiam, e alguns empoleiravam-se em cima da matrícula, imunes ao susto e ao perigo, e partilhavam por alguns minutos a nossa viagem. A certa altura, já quase a chegar, o Pedro, oportunamente, lembrou-se de trautear o tema principal da banda sonora do Indiana Jones – e todos cantarolámos à mistura com largos e duradoiros sorrisos.
A ponta de Santa Maria é uma pequena baía, numa das extremidades da ilha, muito conhecida pelos recifes que servem de abrigo e alimentam uma panóplia de espécies subaquáticas. Cercada por uma vegetação praticamente intransponível, esta pequena praia não é propriamente uma atracção para os amantes dos banhos de sol, da “siesta” à beira mar ou das contruções na areia – o areal, ainda que comprido tem uma largura que apenas acomoda uma toalha esticada quando a maré está vaza. Talvez por esse motivo não tivemos que dividir a praia com ninguém. Mascarámo-nos com os óculos de mar, calçámos as barbatanas e começámos a nossa modesta aventura “Costeauniana”.
Assim que imergi a peixaria não se fez esperar para me dar as boas vindas. Várias cores e formas - feios e bonitos, pequenos e grandes, tímidos e extrovertidos, medricas e indiferentes, familiares e nunca jamais vistos - ali havia peixe para todos os gostos e feitios. Com os braços colados ao tronco, fui barbarteando o corpo harmoniosamente por entre as rochas e recifes, tal qual o “Homem da Atlântida” me havia ensinado nas tardes de tv da minha infância. Para a última meia hora estava reservada a melhor parte. Aproveitei a chegada de um grande cardume para fazer parte do conjunto. Eram predominantemente amarelos, de forma losangular e do tamanho de uma mão pesada. Indiferentes à minha presença apenas se afastaram para me deixar entrar no grupo e logo voltaram a fechar a roda. Às vezes aceleravam o passo (ou a barbatana) para responder ao meu excesso de confiança quando tentava tocar – não me toques que me desafinas, diziam. Ali bem no meio do reboliço submarino, em êxtase, nadava de barriga para cima e perdia-me no tempo enquanto tentava gravar na retina a visão do momento. O folêgo era o único que me incomodava ali em baixo e dava conta da minha condição de humano. Emergi e repeti o convívio marinho até ao final da tarde. Regressámos depois de um pôr-do-sol, inigualável, que contrariamente ao habitual desapareceu no mar. A volta teve o mesmo entusiasmo da ida, com a diferença que era de noite e as atenções centravam-se no céu estupidamente estrelado, sempre que as árvores permitiam.
A alvorada dominical teve a luz solar como sinal e seguiu-se com mergulho na piscina de água salgada do hotel. Às oito peguei na prancha à vela (actividade incluída no pacote do fim-de-semana) e passei a manhã a desenferrujar a minha longínqua afinidade com o windsurf. A manhã de desporto terminou por força de um ouriço do mar que fez questão de se atravessar no meu caminho – doze espinhos no pé que ficou coxo e a promessa de não voltar a andar sem calçado apropriado em águas desconhecidas.
Depois de almoço assistimos, via tv, ao aguardado jogo dos “Mambas” (resposta Moçambicana à alcunha Portuguesa “Tugas”) que defrontavam a reputada selecção Nigeriana, numa partida disputada “taco a taco” com desfecho exécuo.
Volvemos a Maputo, com a promessa de voltar, num “Cesna” que fretámos a um conhecido da Maggy.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Cidadania participativa a 10.000Kms de casa

Na quinta-feira passada fui a um fórum no consulado Português a convite da Dra. Graça Gonçalves Pereira, Cônsul Geral em Maputo, e com a chancela da comunidade “Star Tracker” da qual faço parte desde a minha estada em Madrid. O tema era “Cidadania participativa a 10.000Kms de casa”.

A reunião foi em jeito de tertúlia onde o organizador, após breves comentários e sugestões, assumiu o papel de moderador deixando a palavra ao sinal de um levantar de dedo. Alguns falaram mais do que outros mas não houve quem da palavra tomasse posse definitiva. No meu caso, ainda que com alguma inquietação no indicador para içar em riste, reservei-me ao silêncio mas não à escuta e consequente exercício de opinião.
Os temas abordados foram, na minha opinião, bastante pertinentes ainda que as discussões de quando em vez fugissem para outros quadrantes um pouco distantes do tema principal. No entanto, o facto de se debaterem temas relacionados com o nosso País fez, por si só, com que exercitássemos o objecto da ordem do dia.
Afinando pela frequência da Sra. Cônsul, que lançou a perspectiva do exercício da cidadania associada à preocupação e manutenção da boa imagem do país no estrangeiro, queria registar a minha modesta opinião sendo que me parece pertinente por observância de alguns comportamentos menos nobres, cá em Moçambique, que contrariam os maduros conselhos da Dra. Graça.
Poderia dar exemplos concretos para dar continuidade ao meu parecer. Alternativamente, reportar-me-ei a uma pequena experiência pessoal para não correr o risco de sair machucado pela mão dos que, seguidamente, lhes sirva a carapuça.

Há um ano e meio, em Madrid, acabava de entrar no prédio duma amiga, sito na Ortega y Gasset (umas das ruas mais famosas da capital onde têm lugar as mais luxuosas e caras lojas prêt-à-porter, situada no afidalgado e conservador bairro de Salamanca). À minha frente subia as escadas do hall de entrada uma senhora, Espanhola, que transportava com dificuldade algumas compras. Prontamente, voluntariei-me a fazer o trabalho que os mínimos da educação exigem. Ao encontrar o elevador avariado, não me restou alternativa senão perguntar à senhora qual o andar do seu apartamento. E Ganhei uma viagem ao sétimo sem saber ler nem escrever. Ao chegarmos à porta a senhora puxou da carteira para me pagar o frete, ao qual eu, raivoso, devolvi um “não” delicado com uma cara e tom hipocritamente angelical. Perguntou então se eu não era romeno, como que procurando uma justificação para a minha atitude, para ela incompreensível, mas cavalheira. Respondi negativamente e acrescentei que era Português. Seguiu-se um “Joder!” (impropério proferido por qualquer Espanhol que se preze, desde o “carretero hasta la reina”) de surpresa seguido de uma forte gargalhada como que se tivesse encontrado algum cão com asas (vulgo, Português educado). A cólera que se apoderou de mim foi amparada pelo sentido de cidadania que me persegue – desconversei educadamente, despedi-me da mesma forma e fui pregar para outra freguesia. Aos reencontros que se seguiram tive direito a distintos cumprimentos, dignos do estatuto de Português que orgulhosamente faço questão de levar para toda e qualquer parte.

No meu entender, da mesma forma que temos o privilégio (pelo menos para mim) de sermos Portugueses também carregamos às costas o fardo da conservação, ou neste caso melhoramento, da imagem do nosso rico país – não se julgue, que está apenas em jogo a nossa reputação individual. Há direitos e obrigações. Seja em Espanha, ou em qualquer outra parte do mundo. Com brancos, pretos ou amarelos.
Cá por Moçambique, como se não bastassem as sequelas da nossa História em comum, observam-se com frequência Portugueses com uma invejável taxa de prepotência e soberania, com atitudes execráveis, desde o menos nobre ao vergonhoso e puritano. Com repercussões directas e imediatas no comportamento dos Moçambicanos em relação aos próximos “tugas” que se lhe atravessem.
Exige-se respeito, muito para além da inquestionável boa educação, relativamente ao país e aos que fielmente o representam. Todas as acções têm consequências e só as boas interessam, sendo que as más não constituem, nesta matéria, exercício de cidadania.


Seguiu-se a bonança ao “Brainstorm” privado e a convite da anfitriã deixamos o consulado para continuar o convívio, agora de forma mais descontraída e com direito a repasto volante. Aproveitei para privar com variadíssimas personalidades, faltando apenas a prometida presença do produtor Galvão Teles (Fados) que se encontrava em Moçambique a rodar “o último voo do flamingo” baseado no mesmo romance de Mia Couto. Já para o fim fomos brindados com um momento musical, a solo, de violino. Assistimos com prazer num ambiente que lembrava o “cucurrucucu” do Caetano interpretado para o filme “Hable com ella”.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Bilene

O consenso era geral em relação ao tipo de viagem que se pretendia – Sol e Praia. Apenas não havia unanimidade relativamente ao destino nem a forma para alcançá-lo. O grupo dividiu-se em dois, um para a Ponta do Ouro e o nosso grupo para o Bilene.

A excitação começou na manhã de sexta-feira, quando eu e o Pedro Atanásio nos comprometemos a alugar uma mini-Van sem saber à partida quantas pessoas iriam alinhar na aventura - na pior das hipóteses íriamos os dois confortavelmente sem necessidade de alugar casa. Elaboramos as nossas listas de candidatos e começamos a entrar em contacto com os possíveis interessados. A Virgínia, a Thais, o Gabriel (o blogador) e o Hugo foram os primeiros a por o dedo no ar. Mais alguns se seguiram e mais tarde desistiram. Éramos seis. Poucos mas bons.
Saímos de Maputo às nove da noite sem saber onde iríamos “pendurar o pote” à chegada. A viagem que seria de uma hora e meia levou quase três. Talvez pela falta de experiência do único (solícito) condutor em automóveis de volante à direita, pela dificuldade da estrada, pela falta de luz, ou pelas paragens que a polícia nos obrigou a fazer (sem sucesso, graças aos nossos ricos passaportes diplomáticos), chegamos ao Bilene à meia-noite.
Corremos quase todos os complexos turísticos abertos aquela hora – três, o cálculo perfeito do criador, e ao terceiro foi de vez. Alugamos uma casa no “resort” São Martinho, antigo complexo de férias para os trabalhadores dos caminhos de ferro de Moçambique (CFM). O sítio era, segundo os guardas, seguro. Vedado e vigiado por vários guardas, tantos como as casas do complexo, todos eles apetrechados com as respectivas armas (espingardas, shotguns e AK47 – presumo que atribuídas por ordem hierárquica), desconfiamos até tratar-se de uma antiga base militar.
Nós ficamos com a casa 36, a mais alta do complexo e por isso com as melhores vistas sobre o lago que estava mesmo ali a cem metros. Dois quartos, duas casas de banho, cozinha, camas para todos, e um alpendre com mesa corrida que naquela noite dava para o céu estrelado e convidava a uma cervejinha. Tudo por cinco mil meticais o fim-de-semana (12€/noite/pessoa).
Um dos guardas, o Arcanjo (assim se chamava), ganhou logo a nossa confiança pela amabilidade gratuita demonstrada desde que entramos no São Martinho. Ajudou-nos a carregar alguma bagagem, acompanhou-nos em todo o processo de check-in, e até nos fez escolta na zona de diversão nocturna local onde fomos apenas buscar gelo. Agradecemos com um convite para integrar a nossa comitiva durante o fim-de-semana. E agora com cinco marmanjos, um Arcanjo (com Kalashnikov) e um Gabriel, nem Deus se atreveria a por em causa o nosso fim-de-semana.
Essa noite foi o ensaio geral para a “Saturday night fever” que se avizinhava. O Pedro estreou a guitarra como manda a cartilha. Passamos um serão agradável de música ao vivo e Laurentinas Q.B.. Alguns ficaram até ao nascer do sol e outros continuaram.
O Bilene é uma pequena povoação que, por ignorância, empresta o nome a toda a envolvente limítrofe. À semelhança da lagoa de Albufeira, trata-se de um lago de água salgada separado do mar por uma barragem natural de areia. A praia, de mar, é apenas acessível de todo-o-terreno ou de barco. Nós, por imposição, optamos pelo barco.
Pelas dez horas da manhã já o Arcanjo tinha regateado o preço com o Mário, que viria a ser o nosso skipper de serviço nos dois dias de praia. Tratado todo o processo de logística (Comidas, bebidas, cooler, grelhador, carvão e toalhas) pusémo-nos a milhas. Poucas milhas, apenas as que atravessam o lago de uma margem a outra, até chegar à praia. À nossa espera estava a única árvore da praia. E nós não nos fizemos rogados em aceitar o regalo.
Nessa manhã, nós e os caranguejos, inauguramos os banhos durante vários minutos (ou horas). Só os sinais de fumo, emitidos pelo frango no churrasco que o Gabriel começou a preparar, fizeram a malta sair da água - só um Brasileiro para se lembrar de levar grelhador e arca frigorífica (em Brasileiro, cooler) para praia – Saravá.
Já levávamos dois frangos no marcador quando chegou o segundo grupo (Ana Cruz, João Palminhas, Nuno Rocha, Nuno Figueiredo e Raquel Viana). O Arcanjo imediatamente, através das suas “conections”, reservou a casa do lado para os recém-chegados. E continuamos uma tarde agradável entre o mar e a lagoa.
Às cinco da tarde, o Skipper avisou que estava a chegar a hora. Justificava o precipitado regresso com as redes dos pescadores, que a partir das seis da tarde tomam conta do lago e não deixam passar mais barcos. Voltamos a carregar tudo para o barquito cor-de-rosa do Mário e recolhemos para o lado de lá. O grupo dividiu-se em dois: uma parte foi ao mercado comprar peixe, camarão e cervejinha (tentem ler com sotaque brasileiro); a outra voltou à mansão 36 preparar a chegada dos que foram ao mercado (entenda-se, descansar, comer e preparar o grelhador).
O jantar não tinha hora marcada. Fomos comendo à medida que os peixes saltavam do grelhador para a mesa. Nos intervalos, uns camarões cozidos (40 paus o quilo – 1€) para não dar descanso ao dente. Para alguns privilegiados houve caipirinha preparada pela Thais.
Seguiu-se o concerto do Pedro Atanásio – entre músicas que fizeram um e outro dar o ar da sua graça, aproveitou para lançar alguns temas novos e recordar outros tantos da sua autoria. Cantou, encantou e desencantou maneira de empandeirar os convidados do Gabriel, que apareceram e não pareceram estar acostumados léxico do cancioneiro do Pedro. Tudo sem sobressaltos – Good Vibes!
Findo o concerto fomos explorar a zona de diversão nocturna dos locais. Os mesmos que passados poucos minutos nos aconselharam a afectuosamente a abandonar o local correndo o risco de sair de lá com uma mão à frente e outra atrás. Seguimos a sugestão ainda que fora de tempo. Na ausência do nosso (Arc)anjo da guarda houve pelo menos um elemento que não voltou com todos os pertences para casa.
Não contentes com toda a farra, fechamos a noite com um mergulho geral no lago sob o céu vertiginosamente estrelado.O dia seguinte seguiu-se igual ao anterior apenas sem a agradável companhia do Arcanjo. Durante a tarde choveu cerca de meia hora e nós abrigamo-nos na água. O regresso de barco relembrava a viagem que faltava fazer para Maputo e a semana de trabalho que se lhe seguiria. Pegamos nas trouxas e zarpamos. Não sem antes deixar uma palavra de apreço e um abraço do mesmo calibre ao anfitrião abençoado.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Um tiro no pé!

Era a minha segunda semana em Maputo. Jantava na cervejaria Cristal como vinha sendo hábito desde que cheguei. Bife de lombo de Vitela grelhado médio como é habitual. Servido à mesa pela encantadora e cobiçada Marta. Tudo se faz vagarosamente, bem ao jeito Moçambicano. Sem pressa. Bem como as conversas dos presentes, sobre tudo e sobre nada, apenas para fechar o dia de trabalho em boa companhia. Estaríamos a rematar a refeição quando a festa começou.


A cervejaria cristal é um restaurante Português (de Portugueses) bem conhecido da metrópole sito na artéria principal da cidade – que a cruza de uma ponta à outra e provavelmente a mais movimentada. A Avenida 24 de Julho, contrariamente aos nomes das restantes ruas que no seu conjunto formam uma autêntica enciclopédia sobre história de personalidades comunistas, deve o seu nome à nacionalização da educação, saúde e justiça em 1975 pelo então presidente Samora Machel.
Normalmente comemos na esplanada da cervejaria. Cá fora está-se melhor – vê-se gente a passar, o ar corre e não é artificial, e tudo que se quiser comprar está ali à mão de semear. A esplanada está disposta paralelamente à avenida e delimitada por um pequeno muro que, sobretudo nas refeições da tarde, escuda os lambareiros das ofensivas dos vendedores ambulantes. Nesse jantar sentamo-nos por ordem aleatória numa das mesas. A mim tocou-me uma cadeira de costas para a estrada.
Os cafés já tinham sido pedidos e eram aguardados sem sobressaltos. Sem aviso nem razão aparente começaram-se (comecei) a ouvir foguetes. Nesses poucos segundos que separavam o primeiro do quinto foguete, tive tempo para pensar porque raio estariam a lançar foguetes no meio da semana, porque estariam tão próximos, porque o estalar não era tão familiar como os que costumava ouvir no meu País (sempre em festa), porque fugira a adorável Marta para dentro do restaurante, porque raio as pessoas da esplanada se tinham lançado para o chão – É impressionante a quantidade de coisas que podemos equacionar em fracções de segundo! Mesmo assim, consegui ser o mais atrasado do grupo a perceber que não se tratavam de foguetes. Limitei-me a copiar os meus amigos e servi-me do muro como se de uma trincheira se tratasse. Passaram mais vinte foguetes até que, por associação ao efeito Doppler, depreendi que o fogueteiro ou estaria longe, sem munição, ou a carregar a arma. Foi tudo tão rápido que nem deu para assustar. A esplanada recompôs-se. A Marta apareceu. E nós voltamos a sentar-nos.
Ao que parecia, segundo aqueles que não estavam de costas para a avenida, tinha passado um carro com bastante pressa, perseguido pela polícia e pelas balas das suas kalashnikov. A AK-47 (ou Kalashnikov) faz parte da farda da polícia moçambicana bem como da bandeira nacional, que ironicamente traça uma cruz com uma sachola símbolo do trabalho e da produtividade (e como se não bastasse ostenta um livro por trás, que eu, talvez por ignorância, associo a sabedoria, conhecimento e educação).
Para a polícia moçambicana é indiferente que se cruze alguém na estrada enquanto persegue o suposto criminoso bem como, neste caso, os clientes da cervejaria cristal. Importante é apanhar o fugitivo mesmo que para isso fuja um projéctil para alguém que nada tem a ver com o assunto – isso são danos colaterais, vicissitudes da luta contra o crime.
Uns minutos mais tarde vimos regressar o carro da polícia ao local do crime – mesmo ali ao lado da cervejaria. Como bons curiosos (leia-se Portugueses) eu e o Rui fomos espreitar para perceber o sucedido. Ao aproximarmo-nos da carrinha da polícia estava um rapaz (entre os vinte e os trinta nos de idade) alvejado num dos pés donde escorria sangue e pintava parte da carrinha. Parecia conformado com a situação. Talvez pensando em finais mais trágicos que lhe podiam ter calhado na rifa.
Nessa altura perguntava-me como teria sido possível ser atingido no pé sendo que o carro dele era o que liderava a corrida. Meti conversa com um moçambicano que estava ali ao pé. Ele explicou-me o sucedido: O rapaz estava com amigos a beber umas cervejas antes do regresso a casa; achou que não devia pagar a última; o dono da barraca chamou a polícia; o rapaz ao ver a polícia pôs-se em fuga; tiro no pé.
Faltava justificar a pontaria do Clint Eastwood moçambicano. O mesmo local explicou-me que era prática comum da polícia atirar ao pé. Nessa altura reformulei a imagem que tinha da polícia moçambicana. Por pouco tempo, o tempo dele acabar a frase – a polícia atira ao pé depois de apanhar o bandido.

O crime aqui pune-se severamente desde que seja preto e pobre. A este rapaz, a cerveja por pagar valeu-lhe um pé furado por bala, e provavelmente ficará coxo para toda a vida. Resta-lhe o consolo de saber que, mesmo assim, constitui uma vantagem em relação aos mentirosos.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Praia e marisco... Marisco e praia (viagem ao Tofo - 2ª parte)



Não havia planos para o jantar e dado o adiantar da hora fomos forçados a aceitar a única solução disponível – Fatima’s Nest – o “chiringuito” mais movimentado da praia. Enquanto aqueciam o caril de gambas a Filipa convidou a malta para pisar a areia e sentir a temperatura do mar. À medida que descíamos as escadas do Fatima’s para a praia, as dunas escondiam a luz artificial e proporcionavam uma visão incrível do céu estrelado.
A areia, de tão fina, quando pisada provoca uma ligeira cócega no pé acompanhada por um ruído estranho, de frequência muito semelhante a outros ruídos menos próprios e por isso perfeita para oportunistas. Eu próprio, apenas a título de experimento, comprovei a camuflagem.
A temperatura da água é um absurdo - perfeita para incursões nocturnas. Deixamos para mais tarde e voltamos ao pé na tábua para tirar a barriga de miséria.
Enquanto ceávamos o Mosca ia explicando os planos e as alternativas do fim-de-semana. À medida que os minutos passavam a casa compunha-se de clientes, que a julgar pelos diferentes tons de pele e idiomas praticados, seriam de todos os cantos do planeta. O ambiente, propício para o convívio internacional, convidou-nos a ficar até à última música e mesmo sem ela levamos o nosso tempo a arredar pé. Aproveitamos o convite de uma portuguesa que gentilmente ofereceu a casa e o conteúdo do frigorífico para dar continuidade à festa. A festa continuou com americanos, sul-africanos, moçambicanos e tugas, até à chegada do segundo grupo (Rui, Jean, Pia, Maria João e Diogo) que partira de Maputo após a jornada laboral.
Com o passar das horas o sol não resistiu a romper e nós correspondemos com companhia na praia do Tofinho, mesmo ali ao lado da casa (do Mosca) que nos dava guarida. Passámos várias horas na água entre conversas, carreirinhas, tentativas de surf, e corpos a flutuar. O tempo, felizmente, parecia não passar. Perguntei a mim mesmo que horas seriam. Avaliei. E só o relógio me fez acreditar que faltavam quatro horas para o meio-dia que eu jurava ser. A essa altura apareceu um “mufana” com duas lagostas e algum peixe a tentar a sorte com a malta de pele branca. Dissemos que era muito pouco para tantas bocas famintas e que teria que trazer pelo menos três quilos. O puto, munido da sua rudimentar espingarda de caça submarina (pau, elástico de borracha câmara de ar, cordel e arpão de arame), desapareceu entre a areia e o mar e só apareceu depois da nossa sesta matinal que se prolongou até à hora pré-prandial. Artilhado de lagosta até aos dentes, ganhou o dia por apenas duzentos meticais (seis euros).
O Chef Rui e o seu braço direito (senhor João) prepararam a iguaria e nós, à mesa, correspondemos com silêncio e sorrisos de deleite.
Pela tarde fomos para a praia da barra. O cenário era um pouco diferente. A praia mais comprida, quase interminável, era separada da lagoa vizinha por milhares de coqueiros e algumas zonas pantanosas. Partilhamos o areal com o mar, a calmaria, e com milhares de caranguejos que apanhavam banhos de sol (e de mar) ao longo de vários quilómetros. Não contentes com o almoço, não resistimos a caçar alguns para o lanche.
Na volta, a Pia teve a excelente ideia de passar pelo Flamingo’s Bay (resort de luxo por cima do pântano contíguo à praia). Aparentemente reservado a hóspedes, invadimos o espaço sem dar cavaca a ninguém e tomamos conta da piscina que se debruçava sobre o pântano salgado. Armados de caipirinhas ficamos na água até ao pôr-do-sol.


Uma breve passagem por casa para um duche de água doce e estávamos prontos para o jantar de aniversário da Filipa e do recém-chegado Nuno. O jantar foi na "casa de comer". As escolhas dividiram-se entre peixe, marisco e carne, ainda que a maioria não tenha querido quebrar a corrente do dia. Eu comi muito bem – santola – e bebi pela mesma medida – vinho branco sul-africano. As conversas vaguearam pelas memórias frescas do dia passado, por gemidos e trincas de prazer, pelo tema que patrocinava a efeméride, por temas sem nexo e por muitas gargalhadas e sorrisos cúmplices. Foi um jantar bem ao nível do resto do dia. No final passamos para a zona lounge. Sentamo-nos nos sofás e bancos disponíveis e formamos um círculo à volta de uma mesa que rapidamente se tornou num amontoado de copos. Brindamos aos aniversariantes a convite do dono da casa que “cavalheirescamente” incluiu o brinde na conta do jantar. Terminamos a noite no Fatima’s Nest, bem ao jeito da noite anterior.

terça-feira, 17 de março de 2009

Nós passamos, mais ninguém passou...

Mais um fim-de-semana a convite do Rui Mesquita. Desta feita para a Suazilândia e com uma equipa diferente. Para além do piloto acompanhavam também a Liz e o Mike (dois Americanos simpáticos amigos do Rui que também vivem temporariamente em Maputo). Às 18h recolheram-se os últimos passageiros e começou mais uma (pequena) road trip.

O trânsito para sair da capital pôs em causa os nossos planos, ameaçando a nossa passagem na fronteira de Namaacha. Por esse mesmo motivo, e depois de passar a portagem da Matola, a marcha que então era lenta passou a Vivace. Levamos cerca de hora e meia a fazer o trajecto Maputo – Namaacha. A Liz e o mike encarregaram-se da banda sonora – enquanto um falava a outra baixava as orelhas e vice-versa, com uma cadência alucinante debitavam monocórdicas palavras invariavelmente sobre o tema “trabalho”. Sempre a abrir!
O primeiro way-point foi alcançado “rés-vés Campo de Ourique”. A fronteira fecha às 20h00 e nós demos entrada às 19h55m. Ainda assim corremos o risco de “bater com o nariz na porta” da alfândega Swazi, sob pena de passar a noite em território neutro – uma vez fechada a alfândega as portas de ambos os países fecham-se e só voltam a abrir às 6h00 do dia seguinte. Nós passamos. Nesse dia, mais ninguém passou.
Entrados no reinado da Suazilândia as diferenças sucediam-se vagarosas: As estradas carentes de buracos eram perfeitamente compensadas pela quantidade de lombas (leia-se, estrutura convexa em asfalto de quinze centímetros de altura que barra a passagem de uma ponta a outra); a quantidade de vacas no meio da estrada fazia jus à reputação Swazi de exportador de carne, e prometia um fim-de-semana de tirar a barriga de miséria; mais curvas; menos gente ou quase ninguém a caminhar no meio e na berma da estrada; organização das culturas agrícolas; auto-estradas; etecetera.
Chegamos ao nosso destino (Mbabane) duas horas mais tarde. Cheios de larica, parámos no primeiro restaurante que conseguimos aberto – Nando’s (resposta do português Fernando ao império Kentucky Fried Chicken). Carregaram-nos o frango de picante e metade da tripulação andou duas horas a saber da barriga.
A nossa estadia na Suazilândia estava garantida pela Liz e pelo Mike. Antecipadamente, tinham reservado o sofá e quatro metros quadrados de chão na casa de umas amigas americanas que trabalham em Mbabane. O encontro com as anfitriãs foi num bar/discoteca de Manzini. Passei algum tempo a conversar com um local, que ao contrário do ambiente aparentemente hostil me recebeu com simpatia e paciência de santo – a tertúlia, sobre o país e a SIDA (e mais tarde sobre racismo), prolongou-se até à hora de abalar.
Para o dia seguinte estava reservado um concerto na “House on Fire” – complexo turístico ou de ócio onde se realizam mensalmente bons concertos. Chegamos por volta das 13h para o brunch. O espaço era bastante aprazível. A partir do alpendre onde comemos, estendia-se um grande relvado (onde em Junho está repleto de gente no “Bush fire festival”) que terminava com um grande campo de milho. Um pouco mais ao fundo, algumas montanhas, bem recortadas, davam conta de que não estávamos em Moçambique. Eu e o Rui pedimos um bife de vitela grelhado que estava delicioso.
Ao terminar a refeição fui à casa de banho fazer o que tinha a fazer. Ainda que o pormenor possa parecer perfeitamente dispensável, o momento de verter águas revelou um detalhe importantíssimo. Na mesma parede que segurava o urinol jazia uma placa que dizia “Jimmy Carter, President of the United States of America, Stood here” – em Português, o Jimmy Carter mijou aqui. Acabei o serviço e saí da casa de banho ainda com um sorriso nos lábios.
A House on Fire tem vários espaços: parte de restauração onde existem vários menus para degustação volante, uma área na parte exterior (à semelhança do raio que o parta) para os mais novos fazerem barulho à vontade, uma galeria de arte (com uma exposição de escultura em madeira de se lhe tirar o chapéu), uma zona lounge, o bar propriamente dito, e a área principal era constituída por um palco abraçado pela pista e bancadas ao jeito de anfiteatro – para os mais românticos e privilegiados havia ainda uma espécie de camarotes suspensos com mesa e luz de vela.
O concerto, principal, começou 16h depois de terminar uma boa massagem, que durante vinte minutos e por apenas 5€ me dei ao luxo de desfrutar. O protagonista deu entrada no palco. A avaliar pela recepção apoteótica depreendi tratar-se de gente famosa e de craveira internacional. O que é certo é que, a começar o segundo tema, os que estavam nas bancadas deixaram os seus lugares aparentemente cativos para se cravarem com unhas e dentes na pista de dança. Volta e meia, o artista para animar o público (ou talvez para seu próprio regozijo) perguntava ao público se “the house is on fire?”, ao que os bailarinos em êxtase respondiam com assobios, palmas, gritos e sobretudo “yeahhh”. Foram algumas horas de concerto e bailarico pela tarde (e noite) dentro. Regressamos a casa convencidos que o dia estaria para romper – era apenas uma da madrugada.
Supostamente, a manhã seguinte seria dedicada a um parque natural. A chuva trouxe preguiça e embalou-nos na cama (leia-se chão) até à hora de almoço. Almoçamos no Royal Swazi Hotel – unidade hoteleira, pérola da Suazilândia, constituída por hotel, spa e casino. Comi um naco de vitela de chorar por mais, por tão só $5.
Depois do repasto fomos dar um mergulho numas piscinas naturais de água quente – as piscinas não eram naturais, ao contrário do que nós pensávamos. Eram de betão bem armado. A água, essa sim, saía da terra a 30ºC. O que proporcionou uma breve pausa de relaxamento ao mesmo tempo que trocava umas impressões com um aquista local.Ainda houve tempo para visitar um pequeno parque natural (Mantenga National Park) onde tivemos a oportunidade de contemplar (a meia distância) as “Mantenga Falls”. O sossego envolvente e o cenário natural fizeram com que o tempo passasse num ápice. E o horário rígido da fronteira ditou a hora imediata de partida. Recolhemos as trouxas e pusemo-nos ao caminho com a mesma pressa com que viemos. Chegamos à fronteira às 19h55m. Nós passamos. Nesse dia, mais ninguém passou.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Com saltos, sem sobressaltos (Viagem ao Tofo -1ª Parte)



Do convívio com os meus novos amigos resultou um convite para sair de fim-de-semana. Apenas dois dias haviam passado e já estava a sair da metrópole. Partimos a meio da tarde debaixo do calor abrasador africano, em direcção a norte, e com seiscentos quilómetros pela frente.










A viagem começa mesmo dentro de Maputo, a partir da zona do Aeroporto, onde a pobreza dita o limite entre os subúrbios e a cidade. As mesmas imagens que me brindaram à chegada regressaram e pareciam não querer terminar. O reflexo do condutor para fechar o vidro do carro não foi suficientemente rápido para evitar a lufada de ar fétido que anunciava a passagem pela lixeira “municipal”. Nem mesmo com o vidro fechado. A imundice estendia-se por vários hectares e parte dela beirava com a estrada. No entanto as pessoas não aparentavam ter qualquer problema de convívio com esta realidade. Pateavam o passeio, que não existe, limitado pelo muro da lixeira e o alcatrão da nacional nº1, como se fossem imunes à terrível fragrância. Do outro lado da estrada corria um cordão comercial onde, indiferentes à outra margem, tudo se vendia (comida inclusive). Seguiram-se milhares de palhotas que abraçam a cidade e se estendiam duas dezenas de quilómetros, in decrescendo, até serem engolidas pela impiedosa vegetação.







Passada uma hora de viagem, uma acácia erguida no meio do nada anunciava a entrada na savana africana. A partir daqui, com a excepção do Xai-Xai, a paisagem estava intacta de dedo humano (leia-se, betão armado). A beira da estrada estava permanentemente agitada por comércio ambulante, gente para cá e para lá, miúdos a brincar, senhoras que carregam coisas na cabeça, homens a descansar, polícia à cata de multa (ou comissão), galinhas, etc. Os vendedores de caju penduram sacos plásticos brancos nas árvores junto à estrada, para avisar com antecedência os condutores que ali se faz negócio. As pessoas aparecem sem avisar e sem se perceber de onde. Outras desaparecem da mesma forma, investindo para dentro do mato onde às vezes se vislumbram pequenas aldeias nativas. Normalmente descalças, batem os trilhos da berma sem medo aos raios solares nem aos carros que circulam na estrada.







Fizemos a primeira pausa para hidratar passadas duas horas de viagem. Parámos numa esplanada para tirar o gosto a uma Laurentina e esticar um pouco as pernas. Um cartaz dava conta da ausência de seguro (ou insecticida) para eventuais aterragens de emergência, de insectos, nos pratos dos clientes. Talvez por não estar a comer ou pelo calor que ainda se fazia sentir, não passou por ali nem um único mosquito.




Com saltos mas sem sobressaltos continuamos a nossa viagem. A estrada (nacional nº1, construída pelos Portugueses, que desde então conserva o mesmo asfalto) estava cheia de buracos e a tranquilidade da viagem dependia em larga escala da astúcia e reflexos do condutor. O trânsito aumentava dando sinais do fim-de-semana prolongado que se avizinhava. Chapas e machibombos abarrotados de gente, circulavam lentamente e abrandavam o nosso ritmo. Quase todas as carrinhas de caixa aberta traziam gente sentada em cima da carga. Ao ultrapassa-los alguns diziam adeus, outros pareciam demasiado exaustos para levantar a mão, alguns mais novos enfrentavam o vento com as ventas e desfrutavam em jeito canino, outros dormiam, todos com a satisfação do regresso a casa.




Ao passar por Madendere paramos na casa da senhora Podina. Esta paragem havia sido programada pelos meus amigos (Filipa e Pedro) que já conheciam a anciã (solícita senhora que há algum tempo atrás quando passavam por esta pequena aldeia pôs à disposição a sua humilde casa para guardar o carro, que então se havia avariado). Mais uma vez a amável senhora recebeu-nos de braços abertos. Convidou-nos para entrar na sua casa e à luz de vela conduziu-nos até à sua pequena machamba onde havia uma pequena área de lazer. Enquanto conversávamos com os restantes familiares bebemos mais uma Laurentina cada um. Passamos talvez vinte minutos até que o crepúsculo se tornou noite e seguimos viagem.


A noite estava escura como breu e a atenção do condutor foi forçosamente redobrada. Ainda assim, foi possível enxergar as silhuetas das copas dos coqueiros, que eram aos milhares. Estávamos a chegar ao destino.
Fizemos o check-in em casa do Pedro Mosca. Cumprimentamos o senhor João (fiel empregado e segurança da casa) e fomos jantar.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Soirée maningue nice




É engraçado como algumas pessoas se entreajudam sem se conhecer, bastando para isso uma pequena afinidade entre elas (da mesma terra, do mesmo clube, da mesma geração, do mesmo país, do mesmo continente, do mesmo planeta, etc.). No meu caso foi a minha condição de contacto(1) que propiciou este grau de semelhança.
A comitiva que me recebeu (contacteantes, erasmus, locais e outros que por cá andam) é de se lhe tirar o chapéu. Verdadeiros altruístas(
2) que me proporcionaram uma recepção fora de série e momentos que dificilmente se apagarão da minha memória.

Prontamente, o grupo abriu uma vaga em meu nome para incorporar os planos que estavam na ordem do dia. Desenharam um roteiro turístico à luz das suas experiências e preferências e sem querer saber a minha opinião (talvez por estarem certos de que seria o melhor para mim) abriram as hostes da boémia no Cineteatro/bar Gil Vicente.
Cem paus para entrar (pau = metical = moeda local) e tiro certeiro! Um espaço de música ao vivo com um ambiente maningue nice(3), de fazer inveja a muitos spots de renome da capital portuguesa. O espectáculo do dia era uma espécie de jam session dançante, isto é, da plateia ao palco subiam vários artistas única e exclusivamente para dançar. Perfeitamente sincronizados com a irrepreensível percussão, os clientes/artistas ora dançavam em grupo (com coreografias pré-programadas) ora em modo Freestyle (improvisando danças e movimentos que fariam qualquer catequista levar as mãos à cabeça).
Era o primeiro contacto com os meus novos amigos e por isso adoptei um comportamento sério, digno de pessoa que não sou. As conversas eram a meio gás, condicionadas pelo volume da música e pela minha comedida postura de recém-chegado. Por essa altura havia uma Laurentina(4) que já tratava por tu. As demais conterrâneas, agora Maputenses, não passavam grande cavaca, demonstrando especial atenção para os clientes de pé ligeiro. E à medida que a soirée avançava, também o meu pé ganhava vida própria parecendo querer acompanhar o baile colectivo. Ainda assim contive-me para não prejudicar a minha cauta imagem.
De quando em quando chegava mais um novo elemento do grupo. Um deles, habitué das lides nocturnas a julgar pelo comportamento e pelos beijinhos que distribuía, deu o mote para mais uma aventura. A proposta foi aceite por unanimidade da qual eu, uma vez mais, não constituía opinião relevante. O sorrisinho matreiro dos presentes ameaçava uma prova de fogo em jeito de praxe. Sem ter acesso a muita mais informação, o destino era o “Luso”.

Mais cem paus a cada um, sem direito a consumo mínimo e demos entrada no Luso. Era estranho ainda que com pontuais pormenores que me eram familiares. Tratava-se de uma boîte no verdadeiro sentido. Uma espécie de Cabaret Maxim há quatro décadas atrás, mais escuro e com empregadas mais atrevidas.
A comitiva anfitriã fitava-me, tipo sinal horário, estudando as minhas reacções à novidade. Pedi mais uma Laurentina(4) e continuei, parvo, a observar o ambiente inicialmente hostil. Num dos bancos altos do balcão fui-me acomodando ao tempo e ao espaço. Enquanto trocava impressões com um dos presentes, algumas meninas que passavam trauteavam propostas ousadas, inteirando-se prévia e cuidadosamente do estado civil de cada um (fruto da maioritária presença feminina do grupo de amigos).





De repente e sem razão aparente (pelo menos para um novato como eu), os clientes sentaram-se nas cadeiras que lindavam com o palco, rapidamente reordenadas pelos próprios em forma de hemiciclo. Ao que, meio minuto depois, se sucedeu a entrada da artista em palco com uma vela na mão. Nessa altura percebi que o reboliço tinha sido provocado pelo canto neo-gregoriano (vulgo, tema “Sadeness” dos Enigma), perfeitamente enquadrado no tema do espectáculo, que antecedia a entrada apoteótica do talento. Encostei-me à parede do fundo, de maneira a não tapar a vista de nenhum cliente. E pasmei!
Até este momento tudo era, entenda-se, normal. A partir daqui tudo foi surpresa e espanto. A artista tinha programado um espectáculo de fazer inveja ao palhaço Quinito. Uma performance circense indescritível (pelo menos sem ferir a susceptibilidade do meu universo de leitores, onde a minha querida mãe se inclui) que conjugava destreza física na hora de subir ao pau (barras metálicas, tipo escada de bombeiro, dispostas pelo palco) e treino Faquir no domínio do fogo e ausência de dor. A cena culminou com um “Bravo” sentido de um dos presentes acompanhado de várias palmas do mesmo grupo. A vela apagou-se e eu, incrédulo, chorei de tanto me rir.
Findo o momento alto da noite, e exausto ainda da viagem de avião, pedi para me levarem a casa. O pedido foi aceite e executado de boa vontade.






1 Programa de estágios internacionais da AICEP (agência para o desenvolvimento e comércio externo de Portugal) do qual faço parte. 2 Correndo o risco de não expressar a devida gratidão aos meus novos amigos, achei por bem dedicar-lhes antecipadamente um texto exclusivo (Altruísmo). 3 Segundo Pedro Mosca, termo herdado da proximidade com a África do Sul (e do inglês). Maningue significa muito, da palavra inglesa many. Nice, juntamente com Saint Tropez são as pérolas da côte d’azur. No entanto, neste contexto, a palavra deriva do inglês (náisse). O adjectivo composto “maningue nice” pode significar: bom, porreiro, muita fixe, bué da fixe, etc.; dependendo da geração em que cada leitor se enquadra. Respectivamente, actuais sexagenários, geração Sócrates, minha geração, geração chocapic, etc. 4 Natural de Lourenço Marques; ou (neste caso) Resposta Moçambicana à cerveja Portuguesa Sagres.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Altruísmo

Na sequência das primeiríssimas impressões, passei a registar os acontecimentos dos primeiros dias em Moçambique. Logo no primeiro parágrafo, enquanto descrevia as primeiras pessoas que conheci, utilizei o termo altruísta. Depois de reler o texto calmamente, senti-me na obrigação de, em jeito de agradecimento, esclarecer qual o significado para mim do adjectivo usado.
Isto porque, há palavras que nem para todos significam o mesmo, e vice-versa. Muito para além do contexto e das circunstâncias em que são usadas, as palavras dependem da interpretação antecipada e sobretudo da moral e valores de quem as usa.
Doa a quem doer, proponho-me fazer um exercício de raciocínio nos próximos parágrafos e dissertar sobre o conceito.

Altruísmo? A maioria dos cristãos associa normalmente, à semelhança da vida que deu luz à sua doutrina, àquele que dá sem receber. Muitos (incluindo aqueles que escrevem dicionários) atribuem o sinónimo de filantropo. Outros menos complicados definem-no, por oposição à maldade, ao que pratica o bem. De uma forma mais técnica, antónimo de egoísmo. E sem grandes excepções, de uma forma geral, o conceito é definido à luz do seu criador Augusto Comte.
O grande problema está na interpretação desse mesmo conceito. Cada um interpreta à sua maneira – como pode, onde pode, e sempre que pode. A maior parte, como lhe convém.
Os maus exemplos são de perder a conta: Aquele que dá vinte paus ao ceguinho e no mesmo instante está a saldar contas com a consciência, convencido de que através da partilha de uma ínfima parte da sua riqueza (patrimonial) pode comprar parte ou a totalidade dos seus atrozes pecados; Mentirosos piropos na esperança de reciprocidade; Políticos à procura de votos, camuflados por obras de caridade; oferendas à igreja (a crédito) na expectativa de agradar ao Criador e ver num futuro próximo os seus desejos realizados; etc.

A minha perspectiva sobre o tema é bastante fria e calculista. Fria porque não dou espaço para o meio-termo, isto é, ou é bom ou é mau. E calculista porque trata a bondade (ou maldade), que classifica a acção de altruísta ou não, de uma forma contabilística (ou de merceeiro, como queiram).
O ser humano, sem excepção, é interesseiro. Não dá ponto sem nó. E por isso é necessário um método para conseguir classificar o altruísmo daqueles que à partida, por força da sua própria natureza (egoísta), não o podem ser.
Trata-se portanto de um método de dupla partida - o que se dá, o que se recebe e o saldo que se obtém com cada uma das nossas acções. A balança tem que estar sempre equilibrada, seja com lucro ou prejuízo.

Repare-se na diferença entre três indivíduos que dão esmola ao pobre: um deles, fá-lo apenas como exercício de sublimação, isto é, auto-convence-se de que é boa pessoa pelo facto de ajudar o mendigo (sendo essa é a sua única intenção ou cobro) e considera-se assim absolvido, pronto para voltar a prevaricar; outro, que parti-lha a mesma ninharia na expectativa de projecção social (caso da maioria dos filantropos), isto é, nunca daria se outros não soubessem da triste proeza; um outro, que o faz a troco do bem-estar que a mesma bagatela proporciona.
Em ambos os casos o movimento das contas é simples: imagine-se creditar a conta “trocos soltos no bolso de suposto altruísta” por débito na conta “pobre coitado que aceita de bom grado a bagatela mas não tem formação suficiente para questionar a sua posição na cadeia económica”. A diferença está no saldo de cada uma das acções. Apenas o saldo do último indivíduo é passível de ser considerado bom (altruísta), dependendo porém do valor que este dá à esmola (bem-estar do pedinte) em relação à respectiva recompensa (felicidade e bem-estar por saber ter ajudado alguém carenciado) – sendo que este rácio é directamente proporcional ao egoísmo de cada um, ou seja, quanto maior mais egoísta.
Por outras palavras, devemos saber conviver com os demais abdicando parcialmente, sempre que possível, da relação umbilical que temos com o nosso ego. Utilizando para isso os valores que educação e o bom senso nos obrigam a aplicar.

Altruísta é portanto, aquele que dá e recebe. Sempre sem ter em conta o que vai receber, o que na maior parte das vezes faz com que receba mais do que o que dá (ex. a satisfação de ver uma criança com um brinquedo é muito maior do que o preço do mesmo; uma boa gargalhada à troca de uma anedota bem contada; ou um doce sorriso de quem recebeu uma flor ou um beijinho).

Findo o meu raciocínio, passo a apresentar os verdadeiros altruístas, os que me receberam em Maputo, a quem não devo nada, mas devo muito ou quase tudo: Ana Amial, Jean, Maria João, Rui Mesquita, Filipa Cardeano, Nuno, Pia, Pedro Mosca e Nuno Adão.
Obrigado.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Talvez quarenta...

Passaram quinze dias desde a minha partida de Portugal e ainda me sinto bastante confuso para organizar ideias, em relação à minha, por enquanto breve estadia. Conseguir formular um texto, que resuma um sem fim de experiências vividas, pode tornar-se uma tarefa penosa, para mim, e sobretudo para o leitor. No entanto sinto-me na obrigação de narrar as primeiras impressões sob pena de desiludir a expectativa daqueles que me querem bem. Optei então por resumir os primeiros minutos, talvez quarenta, em solo Moçambicano.

As experiências, novas, sucedem-se em catadupa. No exacto em que aterrei em Maputo, a surpresa, boa ou má, espreita em cada canto. Não se pode dizer que recebi com choque o primeiro tour que o meu ex-colega de carteira, há tempos radicado na metrópole Moçambicana, me proporcionou à chegada. Trazia a lição bem estudada. E todos os pormenores passíveis de me surpreender estavam escudados pela preparação prévia do desafio. Não obstante, e por muita investigação antecipada, o confronto com a realidade moçambicana (vulgo, pobreza e degradação) deixa qualquer mortal desolado e longe da indiferença. Imortais há em todo o lado. Imortais há muitos, seus palermas.
A chuva que se precipitava no Maputo descolorava o cenário risonho que eu idealizava antes de aterrar. E a viagem até casa, a primeira, retocou o quadro com pinceladas bem mais agrestes.
Á medida que avançávamos no trânsito (fluente mas desordenado) que confinava com a pobreza da beira da estrada, o ânimo dava sinais de fraqueza. E procurava, sem pestanejar, avistar imagens que compensassem a miséria, invariavelmente, à mão de semear. As bermas das estradas estavam atoladas de lixo multicolor que navegava ao ritmo do trânsito, (desconhecendo o significado de sarjeta ou esgoto) e por vezes mais rápido, até desaguar, à força, no primeiro cruzamento que lhe aparecesse para encalhar aleatoriamente em parte incerta. Os passeios esburacados, por sua vez, davam conta de um frenesi comercial de deixar atónito os cristãos de veia mais consumista. Tudo se vende na rua - camas, colchões, fruta, plantas, tabaco, cerveja, telemóveis, dvds, livros, bugigangas, arte, peixe, marisco, carne, sexo, almas, sorrisos, rezas e mezinhas e uma interminável variedade de produtos menos conhecidos. Também ali ao lado estavam as casas, melhor dizendo palhotas, de perder de vista. As cores permitidas nas paredes da sanzala, as que têm cor, são negociadas com os patrocinadores, na sua maioria operadores de telecomunicações, que trocam tintas por publicidade gratuita (por outras palavras, gato por lebre). É nesse cenário que a minha retina registou a primeira imagem do Maputo – um puto a brincar com uma bola, de pé descalço sobre a terra vermelha africana, e em jeito de pano de fundo uma palhota pintada por uma das operadoras onde se lia “Tudo Bom”.
À medida que nos aproximávamos do mar, a pobreza evidente sumia gradualmente até um nível, por comparação, aceitável. A meio caminho começaram a aparecer os primeiros sinais de vegetação urbana – as Acácias parecem projectadas para defender os transeuntes e bólides mal estacionados dos raios solares, ou desta feita, mas com menos eficácia, da chuva que agora era menos.
Nunca deixei de estar atento aos conselhos do meu motorista – bon vivan e conoceur da cultura local. Os alvitres do meu amigo passaram a dizer respeito à mulher moçambicana. Tomei atenção. Comecei imediatamente a por em prática algumas das sugestões. Com o vidro do carro entreaberto e à medida que respondia, só com os olhos, às miradas furtivas das jeitosas o meu ego aquecia e o volume da minha barriga passou a deixar de me molestar. As que iam pela rua, algumas, passeavam com uma graça parecida à graça brasileira (não é que eu conheça muitas brasileiras - apenas uma ou outra amiga e uma resma de moçoilas de profissão duvidosa – mas idealizo à boa maneira do Jobim), e as reacções aos meus piropos oculares eram na maior parte das vezes bem sucedidos, tal qual me avisara minutos antes o anfitrião – lembrei-me do Roberto Benigni e pensei “Funciona!” (leia-se em italiano).
Inevitavelmente, o Nuno rematou o assunto, e muito bem, com a advertência para o tema da SIDA.
Cheguei a casa.