terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Soirée maningue nice




É engraçado como algumas pessoas se entreajudam sem se conhecer, bastando para isso uma pequena afinidade entre elas (da mesma terra, do mesmo clube, da mesma geração, do mesmo país, do mesmo continente, do mesmo planeta, etc.). No meu caso foi a minha condição de contacto(1) que propiciou este grau de semelhança.
A comitiva que me recebeu (contacteantes, erasmus, locais e outros que por cá andam) é de se lhe tirar o chapéu. Verdadeiros altruístas(
2) que me proporcionaram uma recepção fora de série e momentos que dificilmente se apagarão da minha memória.

Prontamente, o grupo abriu uma vaga em meu nome para incorporar os planos que estavam na ordem do dia. Desenharam um roteiro turístico à luz das suas experiências e preferências e sem querer saber a minha opinião (talvez por estarem certos de que seria o melhor para mim) abriram as hostes da boémia no Cineteatro/bar Gil Vicente.
Cem paus para entrar (pau = metical = moeda local) e tiro certeiro! Um espaço de música ao vivo com um ambiente maningue nice(3), de fazer inveja a muitos spots de renome da capital portuguesa. O espectáculo do dia era uma espécie de jam session dançante, isto é, da plateia ao palco subiam vários artistas única e exclusivamente para dançar. Perfeitamente sincronizados com a irrepreensível percussão, os clientes/artistas ora dançavam em grupo (com coreografias pré-programadas) ora em modo Freestyle (improvisando danças e movimentos que fariam qualquer catequista levar as mãos à cabeça).
Era o primeiro contacto com os meus novos amigos e por isso adoptei um comportamento sério, digno de pessoa que não sou. As conversas eram a meio gás, condicionadas pelo volume da música e pela minha comedida postura de recém-chegado. Por essa altura havia uma Laurentina(4) que já tratava por tu. As demais conterrâneas, agora Maputenses, não passavam grande cavaca, demonstrando especial atenção para os clientes de pé ligeiro. E à medida que a soirée avançava, também o meu pé ganhava vida própria parecendo querer acompanhar o baile colectivo. Ainda assim contive-me para não prejudicar a minha cauta imagem.
De quando em quando chegava mais um novo elemento do grupo. Um deles, habitué das lides nocturnas a julgar pelo comportamento e pelos beijinhos que distribuía, deu o mote para mais uma aventura. A proposta foi aceite por unanimidade da qual eu, uma vez mais, não constituía opinião relevante. O sorrisinho matreiro dos presentes ameaçava uma prova de fogo em jeito de praxe. Sem ter acesso a muita mais informação, o destino era o “Luso”.

Mais cem paus a cada um, sem direito a consumo mínimo e demos entrada no Luso. Era estranho ainda que com pontuais pormenores que me eram familiares. Tratava-se de uma boîte no verdadeiro sentido. Uma espécie de Cabaret Maxim há quatro décadas atrás, mais escuro e com empregadas mais atrevidas.
A comitiva anfitriã fitava-me, tipo sinal horário, estudando as minhas reacções à novidade. Pedi mais uma Laurentina(4) e continuei, parvo, a observar o ambiente inicialmente hostil. Num dos bancos altos do balcão fui-me acomodando ao tempo e ao espaço. Enquanto trocava impressões com um dos presentes, algumas meninas que passavam trauteavam propostas ousadas, inteirando-se prévia e cuidadosamente do estado civil de cada um (fruto da maioritária presença feminina do grupo de amigos).





De repente e sem razão aparente (pelo menos para um novato como eu), os clientes sentaram-se nas cadeiras que lindavam com o palco, rapidamente reordenadas pelos próprios em forma de hemiciclo. Ao que, meio minuto depois, se sucedeu a entrada da artista em palco com uma vela na mão. Nessa altura percebi que o reboliço tinha sido provocado pelo canto neo-gregoriano (vulgo, tema “Sadeness” dos Enigma), perfeitamente enquadrado no tema do espectáculo, que antecedia a entrada apoteótica do talento. Encostei-me à parede do fundo, de maneira a não tapar a vista de nenhum cliente. E pasmei!
Até este momento tudo era, entenda-se, normal. A partir daqui tudo foi surpresa e espanto. A artista tinha programado um espectáculo de fazer inveja ao palhaço Quinito. Uma performance circense indescritível (pelo menos sem ferir a susceptibilidade do meu universo de leitores, onde a minha querida mãe se inclui) que conjugava destreza física na hora de subir ao pau (barras metálicas, tipo escada de bombeiro, dispostas pelo palco) e treino Faquir no domínio do fogo e ausência de dor. A cena culminou com um “Bravo” sentido de um dos presentes acompanhado de várias palmas do mesmo grupo. A vela apagou-se e eu, incrédulo, chorei de tanto me rir.
Findo o momento alto da noite, e exausto ainda da viagem de avião, pedi para me levarem a casa. O pedido foi aceite e executado de boa vontade.






1 Programa de estágios internacionais da AICEP (agência para o desenvolvimento e comércio externo de Portugal) do qual faço parte. 2 Correndo o risco de não expressar a devida gratidão aos meus novos amigos, achei por bem dedicar-lhes antecipadamente um texto exclusivo (Altruísmo). 3 Segundo Pedro Mosca, termo herdado da proximidade com a África do Sul (e do inglês). Maningue significa muito, da palavra inglesa many. Nice, juntamente com Saint Tropez são as pérolas da côte d’azur. No entanto, neste contexto, a palavra deriva do inglês (náisse). O adjectivo composto “maningue nice” pode significar: bom, porreiro, muita fixe, bué da fixe, etc.; dependendo da geração em que cada leitor se enquadra. Respectivamente, actuais sexagenários, geração Sócrates, minha geração, geração chocapic, etc. 4 Natural de Lourenço Marques; ou (neste caso) Resposta Moçambicana à cerveja Portuguesa Sagres.

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