sexta-feira, 17 de abril de 2009

Perder a honra e alguns vinténs

A vida corre e o tempo não se fica atrás. Os que olham a morte como inevitável derrota, vêem no tempo o maior inimigo, respeitosamente odiado. Eu, comum mortal, não fujo à regra e dou por mim, no tempo, a divagar sobre esse fiel e imortal companheiro. O exercício, pode ser curto como este parágrafo mas grande como a vontade de o fazer travar e termina invariavelmente sem conclusão mas com certezas quase absolutas. No entretanto (ou entretempo) vou lembrando canções que servem de banda sonora e ao mesmo tempo ajudam meu raciocínio: ouço alguns que imploram que volte atrás; outros que nele se escondem porque dizem que tem asas; alguém que suplica ao relógio para se deter receando que vida se apague; outros tantos que se questionam e queixam da mesma forma e acabo por concluir, de forma simples, imaginando o Pablo Milanés – El tiempo pasa, nos vamos poniendo viejos.. (na versão da Mercedes Soza). A cadência do Chronos nem sempre é a mesma, umas vezes mais insensível porque não nos deixa saborear o momento como pretendíamos, outras vezes arrasta-se, faz dos minutos horas e das horas faz dias. Mas apenas ele, o tempo, caminha para a eternidade, nós não.
Tenho a sensação de estar em Moçambique há bastante tempo, muito embora me faltem alguns dias para completar apenas três meses. Vão dizendo que a distância é o olvido e eu tão-pouco concebo essa razão. E lá vem à baila, inevitavelmente, a saudade. Essa impiedosa vulnerabilidade que a condição humana e distância nos sujeita. Sinto falta da minha família, muito. Dos meus amigos também. É com essa consciência nostálgica e imbuído no espírito fraterno que recordo uma tertúlia passada.
Passeávamos pela cidade num dos mata-sogras dele - nome pelo qual, o Vico, designa os bólides de baixo orçamento da família - a falar de tudo um pouco. Corria o tempo em que a experiência sexual de cada um podia fazer uma diferença quase de pai para filho, ainda que a desigualdade de idades fosse mínima. Talvez por esses dois motivos batíamos vagarosamente a urbe flaviense de “cu tremido” a falar de gajas. Onde o Vico, mais velho, tomava as rédeas do assunto e aconselhava-me até onde a experiência lhe permitia (Bons tempos).
À passagem pelo municipal de Chaves (glorioso estádio do desportivo) o tema girou cento e oitenta graus e passou a dissertar-se sobre o conceito de amizade. Nem todos os amigos se consideram da mesma maneira, aliás a maior parte desse pessoal não passam de conhecidos para mim – dizia o meu amigo, explicando por outras palavras a hierarquia da amizade. A escala começa no pior inimigo, passa pela “persona non grata”, o indiferente, o conhecido, o amigo e culmina nos verdadeiros amigos - no máximo um punhado de compinchas avaliados em jeito de top five.
Sem dar mão da palavra passou a explicar a diferença entre o amigo e o verdadeiro amigo. Utilizou-me como exemplo e eu retribuí com agrado e com sensação de “special one”. Eu gosto muito dos meus amigos – dizia - mas por ti, por ti perdia a honra*.
Precisamente por não ter aplicado na íntegra a referida expressão (perder a honra), eu assustei-me por breves segundos, pondo em causa a sexualidade do meu amigo e a minha integridade física dentro daquele mata-sogras. Rapidamente, e tendo em conta os relatos da conversa anterior, percebi que aquilo era um verdadeiro elogio. Aliás, perder a honra, era como que a prova máxima na escala da benquerença. Neste sistema de medida, perder a honra é mais bravio que dar a própria vida.
Até hoje utilizo esse sistema “métrico” e não imagino outro mais perfeito.
Finda a história deixo um grande abraço de saudades. Sinto a vossa falta e sentirei até que a vida (ou a honra) nos separe.
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*Algum tempo depois deste episódio ouvi um dos amigos do meu pai a utilizar a mesma expressão, um pouco mais elaborada e catastrófica obrigando o protagonista a perder a honra e grande parte do seu património. E usada em situações mais banais e de forma um pouco leviana fruto da idade, experiência e falta de amor ao corpo. Era fim de uma tarde de sábado e o protagonista rematava com a seguinte frase – isto agora para acabar em beleza, eram umas sardinhas com pimentos assados! Dava o cú e três tostões!

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Abram alas!!!

No dia-a-dia Maputense sucedem-se situações que, a nós estrangeiros contrariamente aos impávidos locais, não param de nos surpreender. Muitas vezes são pormenores que, quando escritos, não gozam do mesmo impacto que a privilegiada assistência “in loco” proporciona. Tanto quanto posso vou assentando neste memento alguns acontecimentos engraçados que se me atravessam sem pedir licença e que na maior parte das vezes me alegram o dia.


As sirenes de carros patrulha, em Maputo, são uma constante. A autoridade gosta de se fazer sentir. Normalmente em carros todo-o-terreno comandados por piloto e co-piloto (provavelmente os mais graduados da equipa) que juntamente com os restantes colegas, sentados costas com costas no banco corrido (pregado no centro da zona de carga do carro), batem as ruas da capital em busca do crime. Para além destes, e pelo menos duas vezes ao dia (no inicio e no fim), ouvem-se um pouco mais alto as sirenes dos escoltas do Senhor Presidente Guebuza, que, ainda que distando de pouco mais de um quilómetro entre aposentos e local de trabalho, faz questão em cortar a avenida sempre que vai trabalhar e quando lhe dá na real veneta - devidamente protegido por vários carros e motos, à frente e atrás, em aparato de fazer inveja aos sobrinhos do Tio Sam.
Normalmente, assisto a estes acontecimentos no final da jornada laboral, que invariavelmente passo na esplanada do café piripiri. Entre rissol, Coca-Cola, amendoim e Laurentina, juntamente com colegas e amigos, ali se fecha a tarde a falar sobre tudo e sobre nada.
Nesse dia, como nos outros tantos, o trânsito estava condicionado pelo recolher a casa em massa e pelo semáforo, então vermelho, que fica mesmo ali a dez metros da esplanada – tudo normal. Começámos a ouvir uma sirene e, já habituados à ronca do costume, continuamos o nosso lanche como se nada passasse. Com o aproximar do ruído irritante e da luz azul intermitente apercebo-me que se tratava de um camião dos soldados da paz. Jamais havia visto um carro de bombeiros por estas bandas, pelo que a aparição do bólide vermelho já constituía uma novidade para mim. Vinha desenfreado e como se não bastasse a estridente cantiga da sirene também buzinava como se não houvesse amanhã. Ao aproximar-se dos automóveis, inevitavelmente imobilizados, que aguardavam pelo sinal verde do semáforo lançava ainda sinal de luzes como que pedindo uma milagrosa passagem – era impossível algum carro naquela dupla fila dar mais do que dois palmos de passagem. Ainda assim, talvez em desespero, e praticamente esgotadas hipóteses para o milagre de Moisés, o comandante do camião tirou da manga mais uma tentativa para afastar a barreira. Pegou no megafone e mesmo ali à nossa frente ecoou o seguinte aviso – Senhor Veículo, deixe passar Os Bombeiro! (leia-se com a devida pronuncia Moçambicana).
Toda a esplanada sorriu e riu. E eu fui para casa, contente e com mais uma história no bolso.

Inhaca


Depois de várias promessas à minha amiga Maggy e também por insistência e conselhos de vários amigos e familiares, reservei o fim-de-semana para conhecer um pouco da ilha de Inhaca, mesmo aqui em frente a Maputo.


O voo estava marcado para as oito da manhã. Chegámos com uma hora de antecedência para o check-in. Tive ainda a oportunidade, antes de embarcar, de cumprimentar Mia Couto (que estava de partida para Lisboa) e agradecer as deliciosas leituras que me tem proporcionado. À passagem pelo detector de metais fomos avisados que seria a última vez que nos deixariam voar com garrafas nas mochilas – agradeci com o respectivo refresco (entenda-se gratificação). Às oito, como previsto, entrámos no “chapa voador” e rumámos ao fim-de-semana propriamente dito.
A viagem, de quinze minutos, foi bastante interessante. As vistas, sobretudo para a ilha dos Portugueses, são magníficas – lembram fotos de revistas, que muitas vezes desconfiamos existirem de verdade. O comandante fez-se à ilha com distinta classe e arte, e teve direito a aplauso colectivo.
À nossa espera, entre um sorriso que esconde embaraço e contentamento, estava a nossa querida amiga Maggy Horiuchi. Pegámos nas nossas malas e lancheiras e fomos saber de alojamento para os restantes membros do grupo. Em poucos minutos chegámos ao “Manico Camp”, um complexo low-cost para backpakers composto por várias cabanas, e cozinha e lavabos de uso comum. Eu e o Hugo, porque fomos os primeiros e inicialmente os únicos a confirmar a nossa ida, fomos prendados (pela Maggy) com aposentos de luxo, a preço mais do que low-cost (vulgo, de borla), no prestigiado hotel lodge Pestana.
Provavelmente graças à simpatia contagiante da anfitriã, um dos seus colegas de trabalho sugeriu e ofereceu a viagem à ilha dos Portugueses e mais tarde à ponta de Santa Maria. Poucos minutos depois aí estávamos nós no barco do hotel rumo à ilha que, de nome, nos toca por direito. Com direito a escolta de golfinhos, encalhámos na ilha aparentemente deserta, com entusiasmo e estilo conquistador bem ao jeito “verano azul” – vários quilómetros de praia circular só para nós e para dois casais que nos acompanhavam no barco.
Alguns mergulhos e recolhi ao guarda-sol para recompor o sono que a noite anterior em Maputo me havia roubado – a capital não pára, sobretudo ao fim-de-semana e no que toca a ócio e espectáculos a agenda está sempre bem recheada de eventos irrecusáveis (esta sexta-feira foi a vez de Adriana Calcanhoto e outros músicos locais tão bons ou melhores). Regressámos à Inhaca para almoçar e integrar a Maggy (que acabava de trabalhar) na comitiva.
Subimos para a parte de trás do Defender de caixa aberta e acomodámo-nos nos bancos corridos. A viagem até à ponta de Santa Maria não terá mais de cinco quilómetros de distância, mas desde logo fomos avisados pelo simpático motorista “Carlitos” que demoraríamos cerca de vinte minutos a chegar. A não ser a Maggy, ninguém estava à espera de uma viagem tão alucinante. O piloto, com o pé direito descalibrado, fez-se ao mato a todo o vapor. Nalgumas partes do caminho a vegetação era tão densa que formava um túnel natural, onde o carro cabia à justa, que se estendia por várias centenas de metros. Carregados de adrenalina, atentos às investidas dos galhos que muitas vezes sobravam para nós, fomos curtindo o giro de olhos bem abertos para não perder pitada. De quando em vez, à passagem pelas pequenas povoações (aldeias familiares com quatro ou cinco palhotas), éramos brindados com saudações (ou impropérios!) em shangana. E os mais novos, que às vezes eram às dezenas, corriam atrás do bólide, mais do que as pernas lhes permitiam, e alguns empoleiravam-se em cima da matrícula, imunes ao susto e ao perigo, e partilhavam por alguns minutos a nossa viagem. A certa altura, já quase a chegar, o Pedro, oportunamente, lembrou-se de trautear o tema principal da banda sonora do Indiana Jones – e todos cantarolámos à mistura com largos e duradoiros sorrisos.
A ponta de Santa Maria é uma pequena baía, numa das extremidades da ilha, muito conhecida pelos recifes que servem de abrigo e alimentam uma panóplia de espécies subaquáticas. Cercada por uma vegetação praticamente intransponível, esta pequena praia não é propriamente uma atracção para os amantes dos banhos de sol, da “siesta” à beira mar ou das contruções na areia – o areal, ainda que comprido tem uma largura que apenas acomoda uma toalha esticada quando a maré está vaza. Talvez por esse motivo não tivemos que dividir a praia com ninguém. Mascarámo-nos com os óculos de mar, calçámos as barbatanas e começámos a nossa modesta aventura “Costeauniana”.
Assim que imergi a peixaria não se fez esperar para me dar as boas vindas. Várias cores e formas - feios e bonitos, pequenos e grandes, tímidos e extrovertidos, medricas e indiferentes, familiares e nunca jamais vistos - ali havia peixe para todos os gostos e feitios. Com os braços colados ao tronco, fui barbarteando o corpo harmoniosamente por entre as rochas e recifes, tal qual o “Homem da Atlântida” me havia ensinado nas tardes de tv da minha infância. Para a última meia hora estava reservada a melhor parte. Aproveitei a chegada de um grande cardume para fazer parte do conjunto. Eram predominantemente amarelos, de forma losangular e do tamanho de uma mão pesada. Indiferentes à minha presença apenas se afastaram para me deixar entrar no grupo e logo voltaram a fechar a roda. Às vezes aceleravam o passo (ou a barbatana) para responder ao meu excesso de confiança quando tentava tocar – não me toques que me desafinas, diziam. Ali bem no meio do reboliço submarino, em êxtase, nadava de barriga para cima e perdia-me no tempo enquanto tentava gravar na retina a visão do momento. O folêgo era o único que me incomodava ali em baixo e dava conta da minha condição de humano. Emergi e repeti o convívio marinho até ao final da tarde. Regressámos depois de um pôr-do-sol, inigualável, que contrariamente ao habitual desapareceu no mar. A volta teve o mesmo entusiasmo da ida, com a diferença que era de noite e as atenções centravam-se no céu estupidamente estrelado, sempre que as árvores permitiam.
A alvorada dominical teve a luz solar como sinal e seguiu-se com mergulho na piscina de água salgada do hotel. Às oito peguei na prancha à vela (actividade incluída no pacote do fim-de-semana) e passei a manhã a desenferrujar a minha longínqua afinidade com o windsurf. A manhã de desporto terminou por força de um ouriço do mar que fez questão de se atravessar no meu caminho – doze espinhos no pé que ficou coxo e a promessa de não voltar a andar sem calçado apropriado em águas desconhecidas.
Depois de almoço assistimos, via tv, ao aguardado jogo dos “Mambas” (resposta Moçambicana à alcunha Portuguesa “Tugas”) que defrontavam a reputada selecção Nigeriana, numa partida disputada “taco a taco” com desfecho exécuo.
Volvemos a Maputo, com a promessa de voltar, num “Cesna” que fretámos a um conhecido da Maggy.