quinta-feira, 19 de março de 2009

Um tiro no pé!

Era a minha segunda semana em Maputo. Jantava na cervejaria Cristal como vinha sendo hábito desde que cheguei. Bife de lombo de Vitela grelhado médio como é habitual. Servido à mesa pela encantadora e cobiçada Marta. Tudo se faz vagarosamente, bem ao jeito Moçambicano. Sem pressa. Bem como as conversas dos presentes, sobre tudo e sobre nada, apenas para fechar o dia de trabalho em boa companhia. Estaríamos a rematar a refeição quando a festa começou.


A cervejaria cristal é um restaurante Português (de Portugueses) bem conhecido da metrópole sito na artéria principal da cidade – que a cruza de uma ponta à outra e provavelmente a mais movimentada. A Avenida 24 de Julho, contrariamente aos nomes das restantes ruas que no seu conjunto formam uma autêntica enciclopédia sobre história de personalidades comunistas, deve o seu nome à nacionalização da educação, saúde e justiça em 1975 pelo então presidente Samora Machel.
Normalmente comemos na esplanada da cervejaria. Cá fora está-se melhor – vê-se gente a passar, o ar corre e não é artificial, e tudo que se quiser comprar está ali à mão de semear. A esplanada está disposta paralelamente à avenida e delimitada por um pequeno muro que, sobretudo nas refeições da tarde, escuda os lambareiros das ofensivas dos vendedores ambulantes. Nesse jantar sentamo-nos por ordem aleatória numa das mesas. A mim tocou-me uma cadeira de costas para a estrada.
Os cafés já tinham sido pedidos e eram aguardados sem sobressaltos. Sem aviso nem razão aparente começaram-se (comecei) a ouvir foguetes. Nesses poucos segundos que separavam o primeiro do quinto foguete, tive tempo para pensar porque raio estariam a lançar foguetes no meio da semana, porque estariam tão próximos, porque o estalar não era tão familiar como os que costumava ouvir no meu País (sempre em festa), porque fugira a adorável Marta para dentro do restaurante, porque raio as pessoas da esplanada se tinham lançado para o chão – É impressionante a quantidade de coisas que podemos equacionar em fracções de segundo! Mesmo assim, consegui ser o mais atrasado do grupo a perceber que não se tratavam de foguetes. Limitei-me a copiar os meus amigos e servi-me do muro como se de uma trincheira se tratasse. Passaram mais vinte foguetes até que, por associação ao efeito Doppler, depreendi que o fogueteiro ou estaria longe, sem munição, ou a carregar a arma. Foi tudo tão rápido que nem deu para assustar. A esplanada recompôs-se. A Marta apareceu. E nós voltamos a sentar-nos.
Ao que parecia, segundo aqueles que não estavam de costas para a avenida, tinha passado um carro com bastante pressa, perseguido pela polícia e pelas balas das suas kalashnikov. A AK-47 (ou Kalashnikov) faz parte da farda da polícia moçambicana bem como da bandeira nacional, que ironicamente traça uma cruz com uma sachola símbolo do trabalho e da produtividade (e como se não bastasse ostenta um livro por trás, que eu, talvez por ignorância, associo a sabedoria, conhecimento e educação).
Para a polícia moçambicana é indiferente que se cruze alguém na estrada enquanto persegue o suposto criminoso bem como, neste caso, os clientes da cervejaria cristal. Importante é apanhar o fugitivo mesmo que para isso fuja um projéctil para alguém que nada tem a ver com o assunto – isso são danos colaterais, vicissitudes da luta contra o crime.
Uns minutos mais tarde vimos regressar o carro da polícia ao local do crime – mesmo ali ao lado da cervejaria. Como bons curiosos (leia-se Portugueses) eu e o Rui fomos espreitar para perceber o sucedido. Ao aproximarmo-nos da carrinha da polícia estava um rapaz (entre os vinte e os trinta nos de idade) alvejado num dos pés donde escorria sangue e pintava parte da carrinha. Parecia conformado com a situação. Talvez pensando em finais mais trágicos que lhe podiam ter calhado na rifa.
Nessa altura perguntava-me como teria sido possível ser atingido no pé sendo que o carro dele era o que liderava a corrida. Meti conversa com um moçambicano que estava ali ao pé. Ele explicou-me o sucedido: O rapaz estava com amigos a beber umas cervejas antes do regresso a casa; achou que não devia pagar a última; o dono da barraca chamou a polícia; o rapaz ao ver a polícia pôs-se em fuga; tiro no pé.
Faltava justificar a pontaria do Clint Eastwood moçambicano. O mesmo local explicou-me que era prática comum da polícia atirar ao pé. Nessa altura reformulei a imagem que tinha da polícia moçambicana. Por pouco tempo, o tempo dele acabar a frase – a polícia atira ao pé depois de apanhar o bandido.

O crime aqui pune-se severamente desde que seja preto e pobre. A este rapaz, a cerveja por pagar valeu-lhe um pé furado por bala, e provavelmente ficará coxo para toda a vida. Resta-lhe o consolo de saber que, mesmo assim, constitui uma vantagem em relação aos mentirosos.

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